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segunda-feira, 12 de julho de 2021

Individuação: a arte de tornar-se quem você é

 



Vivemos hoje numa sociedade politicamente polarizada, que enfrenta uma pandemia 

que agrava saúde física, emocional e mental, abalando a economia – principalmente das 

minorias e periferias – e causando incerteza em relação ao futuro. 


Neste contexto, o processo de individuação pode ser mais importante do que nunca.

Este desafiante momento global nos convida a nos voltar para dentro de nós mesmos, 

num movimento introspectivo que pode soar muito difícil – por vezes até insuportável –

para quem não busca conhecer a si mesmo.


Não por acaso, a meta, por assim dizer, da Psicologia Junguiana é o processo de 

individualização. Como diz Magaldi:

O processo de individuação é um caminho do Ego e para o Ego, 

potencialmente presente no Self, que é a totalidade psíquica, 

possibilitando a realização do Si-mesmo, a serviço da Alma, 

que também chamamos de Psique. Esse processo não tem fim, mas 

sua finalidade é o auto-conhecimento, por meio do confronto 

com o inconsciente até surgir o despertar do amor e, 

consequentemente da ética e da necessidade de servir cada vez mais 

para poder ser! (MAGALDI, 2019).


O alvo seria desvelar o que há de único, de individual, de específico para aquele ser humano. 

Nesse processo, ocorrem momentos em que é preciso deixar ir aspectos que não mais 

servem àquela pessoa.


Nas sociedades primevas, os ritos de passagem marcavam este momento de transição, quando 

por exemplo o menino passava por uma prova de coragem para poder se juntar aos homens 

na próxima caçada. Ou, dependendo do momento histórico, trocava os calças curtas por 

cumpridas. Embora também fosse uma questão de vestimenta, era sobretudo uma troca 

de papeis sociais, onde o menino dava lugar ao jovem adulto. Como diz Contrera:

E a ideia de renascimento não pode ser compreendida sem que 

consideremos que o renascimento se segue sempre e necessariamente 

a uma morte. Daí compreendermos que se não somos capazes de 

morrer para algumas coisas e para certos padrões, para relacionamentos 

e papeis, para personas e funcionalidades específicas, não estamos no 

caminho da individuação (CONTRERA, 2020).


Recentemente eu estava lendo um livro que reúne as entrevistas concedidas por C. G. Jung 

e me deparei com esta frase fantástica:

[...] todo o meu trabalho foi direcionado para mim; todos os livros 

que escrevi são apenas subprodutos de um processo íntimo de

individuação (JUNG, 1987, p. 395, tradução nossa).


Fiquei absolutamente tocada por esta afirmação. Só um ser humano que havia testado em si 

mesmo todo seu arcabouço metodológico ao longo de toda sua vida, de forma empírica, 

poderia se dar ao luxo de fazer tal confissão. Alguém auge da sabedoria dos 84 anos,  

que morreria dois anos depois e que se via como um inconsciente que se realizou 

(JUNG; JAFFÉ, 1989, p. 19).


Jung elaborou seus métodos e técnicas porque ele tinha uma dada história de vida, porque 

estava instalado numa dada cosmovisão de mundo que funcionava como raiz da árvore 

conceitual que propôs.


Da mesma forma que Sigmund Freud elaborou sua teoria sobre o complexo de Édipo, 

entre outras. Sabemos por vários relatos que o fundador da psicanálise teve uma relação 

muito intensa com sua mãe, que via nele o germe de um ser humano notável, por quem 

aquela criança era platonicamente encantada (SCHULTZ; SCHULTZ, 2009, 313).


Já Alfred Adler, por seu lado, teve uma mãe que o colocava para baixo 

(SCHULTZ; SCHULTZ, 2009, 364). Ainda assim, e provavelmente por conta desta relação, 

Adler acabou propondo uma teoria que abarca o processo de inferioridade em sua 

compensação com pensamentos, sentimentos e ações relacionadas com o poder.


Para mim, o que Jung quer dizer com tal frase – e o que os exemplos de Freud e Adler entre 

outro ilustram – é que temos várias teorias, métodos e técnicas à nossa disposição. Muitos 

são os professores que vieram antes de nós. E é maravilhoso que o tenhamos. Afinal, em 

muitos momentos da vida, é o amparo de psicólogos e analistas que não nos deixam nos

perder nas profundezas da noite escura da alma.


Neste contexto, o processo de análise junguiana é uma das muitas formas de se 

compreender profundamente quem somos, incluindo as partes que não apreciamos.  

Mas na hora H, temos de saber ir além destes ensinamentos para fazer o nosso caminho.


E, assim, descobrir o processo de individuação que funciona para nós mesmos. 

Como diz outro pensador, o mitólogo estadunidense Joseph Campbell, esses 

professores nos ensinam o caminho. 


Mas é preciso descobrir qual é o nosso caminho (CAMPBELL; MOYERS, 1990) 

para que a mágica da descoberta funcione.


Senão corremos o risco de não viver nossa vida, de ficarmos papagueando, de forma 

livresca e sem alma, teorias, métodos e técnicas que não são feitos sob medida para o nosso 

desenvolvimento psíquico.


Para saber mais

CAMPBELL, J.; MOYERS, B. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

CONTRERA, M. S. O processo de individuação e o caminho do renascimento

Disponível em: 

<https://www.ijep.com.br/artigos/show/o-processo-de-individuacao-e-o-caminho-do-

renascimento>. Acesso em: 8 abr. 2021.

JUNG, C. G. C. G. Jung Speaking: interviews and encounters. New Jersey: Princeton 

University Press, 1987.

JUNG, C. G.; JAFFÉ, A. Memórias, sonhos e reflexões. 11. ed. Rio de Janeiro: 

Nova Fronteira, 1989.

MAGALDI, W. Autoconhecimento como caminho de cura pessoal e social: 

individuação e egoDisponível em: 

<https://www.ijep.com.br/artigos/show/autoconhecimento-como-caminho-de-cura-pessoal

-e-social-individuacao-do-ego>. Acesso em: 8 abr. 2021.

SCHULTZ, D. P.; SCHULTZ, S. E. História da psicologia moderna. 12. ed. São Paulo: 

Cengage Learning, 2009.


Monica Martinez - 13/05/2021


Para citar

MARTINEZ, Monica. Individuação: a arte de tonar-se quem você é. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/artigos/show/individuacao-a-arte-de-tornar-se-quem-voce-e>. Acesso em: 15 mai. 2021.

sexta-feira, 29 de março de 2019

O filho do pastor: narrativas biográficas, relação pai-filho e o processo de individuação

A mãe e o pai de C. G. Jung
Desde meu doutorado, tenho pesquisado as histórias de vida como método. Entender a proposta do psiquiatra Carl Gustav Jung (1875-1961) neste contexto foi o principal motivo que me levou a me aprofundar em Psicologia Junguiana, na qual concluí a especialização em 2014 no Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep).

Na época da conclusão do curso, ganhei de natal o famoso livro vermelho de Jung (JUNG, 2010). Confesso que na época o folheei, encantada, mas não me senti apta a digeri-lo comme il faut.  Parecia-me que, de Jung, eu ainda não havia compreendido o revealing remark, a observação reveladora como o maior de todos os narradores da The New Yorker, Joseph Mitchell (1908-1996) postulava(MITCHELL, 2003). Não raro, Mitchell levava até três anos para escrever perfis de nova iorquinos para esta revista estadunidense que, desde 1925, se não lançou o perfil (profile) como gênero, reúne até hoje a nata deste gênero jornalístico literário (REMNICK, 2000, tradução nossa). Como disse o cineasta João Moreira Salles, "a ´observação reveladora´é aquela que surge absolutamente singular, dita provavelmente pela primeira vez, para surpresa e alegria do próprio falante. É uma palavra nova e inviolada, trazida à tona pela feliz empatia entre quem fala e quem escuta" (SALLES, 2003, 152).

O que estaria no âmago da vida e obra de Jung? Aliás, ele dizia que não tinha criado uma teoria ou sistema. "Freud tinha uma ´teoria; eu não tenho ´teoria´, mas descrevo fatos. Eu não teorizo sobre o surgimento das neuroses, mas descrevo o que existe nas neuroses; também não tenho uma teoria sobre os sonhos, apenas indico o método que uso e os possíveis resultados (JUNG, 2018, p. 17-18). Assim, em 1º. de julho de 2016, iniciei os atendimentos clínicos, a princípio recebendo em meu consultório os pacientes encaminhados pela Clínica Ijep (https://www.ijep.com.br/index.php?sec=pags&id=232) e, desde então, recebendo cada vez mais analisandas e analisandos.

Mesmo depois de tanto estudar a prática junguiana, e já apoiada pela experiência de meu consultório, eu ainda tinha a inquietação de compreender o que havia movido Jung a trilhar seu caminho. Em 2018, adquiri a trilogia das cartas de C. G. Jung. Comecei a ler o volume 1 meio sem interesse, mas na metade já estava encantada com a escrita informal e erudita de Jung, como ele conseguia abordar temas de grande complexidade de um jeito absolutamente simples, direto, criativo e fluente. Como os diários e as entrevistas em formato pingue-pongue, as cartas nos dão a ilusão de estar ouvindo diretamente o outro.
Na carta à pastora Dorothee Hoch, datada de 28 de maio de 1952, veio o insight. "A suposição de que sou vítima de um complexo pessoal pode ser levantada, quando se sabe que sou filho de pastor (...) É verdade que eu não gostava de teologia, porque ela colocava problemas para meu pai que ele não conseguia resolver e que eu considerava injustificados" (JUNG, 2018, p. 240). Em sua resposta, Jung refutou essa hipótese: "Mas eu tive um bom relacionamento pessoal com meu pai - portanto nenhum complexo do tipo comum" (JUNG, 2018, p. 240). Teria ele, contudo, por meio de seus experimentos e obra, vivido a vida não vivida de seu pai?

Se há algo que podemos dizer com segurança é que a perspectiva junguiana é ancorada no universo cristão. "A ética depende da decisão suprema de uma consciência cristã, e a própria consciência não depende da pessoa apenas, mas igualmente da contrapartida da pessoa, isto é, Deus" (JUNG, 2018, p. 24). Não por acaso, o fenômeno religioso e a representação das imagens de Deus ocupam um lugar central em suas reflexões e, por extensão, nas suas cartas, em particular a partir do lançamento de seu livro Aion, em 1951(JUNG, 2012a), e, sobretudo, Resposta a Jó, em 1952 (JUNG, 2012b). O interesse específico de Jung estava nas representações primordiais coletivas que estão na base das diversas formas de religião, que ele chama de imagens arquetípicas. 

Haveria na psique humana uma potencialidade que impulsiona o ser humano a procurar e a se relacionar com o transcendente, seja o nome que se dê para ele/ela, em sua miríade de imagens antropomórficas cujas representações vão mudando de acordo com o tempo, o espaço e a cultura. "O termo ´Deus´ (...) expressa uma imagem ou conceito verbal que sofreu muitas mudanças ao longo de sua história. Em tal caso não temos possibilidade alguma de mostrar, com a mínima parcela de certeza que seja - a não ser a da fé - se tais mudanças se referem apenas às imagens e aos conceitos, ou se atingem o próprio inefável" (JUNG, 2012, § 555). O foco de Jung, portanto, nunca foi de natureza teológica, mas psicológica. Em outras palavras, as máscaras da eternidade, símbolos que nunca serão conhecidos totalmente, como diz o mitólogo estadunidense Joseph Campbell (1904-1987), porque velam o indizível (CAMPBELL, 1992, 2008a, 2008b, 2010). 

Assim, teria a pastora Dorothee Hoch, em 1952, apontado a motivação que teria levado Jung a desenvolver sua obra, que culminaria em Resposta à Jó? Em seu livro de memórias, editado pela analista suíça Aniela Jafé (JUNG; JAFÉ, 1989), Jung conta que em 1887, aos 12 anos, teria tido uma experiência numinosa e começado a sentir dúvidas em tudo o que seu pai dizia. "Suas palavras eram insípidas e vazias, tal como uma história contada por alguém que nela não crê, ou que só a conhece por ouvir dizer. Queria ajudá-lo, mas não sabia como. Uma espécie de pudor impedia que lhe contasse minha própria experiência, ou me imiscuísse em suas preocupações pessoais" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50).

Mais tarde, ao redor dos 18 anos, Jung narra que teria tentado por várias vezes conversar com seu pai sobre o assunto, "sempre com a secreta esperança de fazê-lo sentir algo da graça maravilhosamente eficaz e ajudá-lo em seus conflitos de consciência" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50). Ele continua: "Infelizmente nossas discussões jamais chegavam a uma solução satisfatória. Elas o irritavam e entristeciam. ‘Pois bem - costumava dizer - você só quer pensar. Mas não é isso que importa; o importante é crer. ‘E eu pensava: não, é preciso experimentar e saber; e acrescentava: ´Dê-me essa fé. Ele se erguia e ao se afastar encolhia os ombros, resignado" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50).
Teria Jung, por meio de sua prática, tentado dar uma resposta à inquietação não integrada pelo seu pai, um pastor protestante que paradoxalmente não tinha fé para compartilhar, pregando fazer o que ele mesmo não fazia?

A resposta ao pai talvez esteja expressa na memorável entrevista que Jung concedeu em sua casa em Zurique ao jornalista britânico John Freeman (1915-2014), em 1959. Freeman conduzia uma série chamada Face to Face para a BBC 4. Um ano e meio antes de falecer, ao ser questionado por Freeman se acreditava em Deus, Jung declarou "I don´t need to believe. I know" (FREEMAN, 1959). Em tradução livre: "Eu não preciso acreditar. Eu sei." Transcender o ego e se render ao self, essa contrapartida do indivíduo que é uma das premissas da análise junguiana, é a prova suprema, por assim dizer, do processo de individuação. Ou como Jung disse, com outras palavras, no terceiro volume das cartas em resposta a um primeiro anista da Northwestern University sobre a "vontade de Deus": "É o fator que decide em última instância quando tudo está dito e feito. É essencialmente algo que não podemos conhecer de antemão. Só o conhecemos após o fato". (JUNG, 2018, p. 25). A própria noção de self nasce, em alguma medida, dessa representação divina, a Imago Dei: uma "esfera infinita, cujo centro está em toda parte, e a circunferência em parte nenhuma" (JUNG, 2018b, p. 16).

Jung diz na primeira linha de suas memórias, "Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 19). Se o que o movia era viver a vida não vivida do pai, justificando por meio da experiência e do saber que não era preciso fé para compreender o mistério supremo da vida, parece por esta afirmação que ele o conseguiu, valendo-se da gnose e do empirismo científico, permitiu que o numinoso, que é simultaneamente tremendo, fascinante e misterioso, estivesse presente constantemente no final da sua existência.

Para mim, a questão não é saber se esse insight que me tomou é verdadeiro do ponto de vista factual ou não. Como Jung também disse na abertura de suas memórias, "essa é aminha aventura, a minha verdade" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 19). Do ponto de vista simbólico, essa hipótese fez sentido e me ajudou a entender melhor o cerne da busca de minha representação de Jung. Agora, finalmente, posso me aventurar no sagrado livro vermelho. Minha leitura programada para 2019 será o Liber Novus.

Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista e escritora. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com

Referências