sexta-feira, 29 de março de 2019

O filho do pastor: narrativas biográficas, relação pai-filho e o processo de individuação

A mãe e o pai de C. G. Jung
Desde meu doutorado, tenho pesquisado as histórias de vida como método. Entender a proposta do psiquiatra Carl Gustav Jung (1875-1961) neste contexto foi o principal motivo que me levou a me aprofundar em Psicologia Junguiana, na qual concluí a especialização em 2014 no Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep).

Na época da conclusão do curso, ganhei de natal o famoso livro vermelho de Jung (JUNG, 2010). Confesso que na época o folheei, encantada, mas não me senti apta a digeri-lo comme il faut.  Parecia-me que, de Jung, eu ainda não havia compreendido o revealing remark, a observação reveladora como o maior de todos os narradores da The New Yorker, Joseph Mitchell (1908-1996) postulava(MITCHELL, 2003). Não raro, Mitchell levava até três anos para escrever perfis de nova iorquinos para esta revista estadunidense que, desde 1925, se não lançou o perfil (profile) como gênero, reúne até hoje a nata deste gênero jornalístico literário (REMNICK, 2000, tradução nossa). Como disse o cineasta João Moreira Salles, "a ´observação reveladora´é aquela que surge absolutamente singular, dita provavelmente pela primeira vez, para surpresa e alegria do próprio falante. É uma palavra nova e inviolada, trazida à tona pela feliz empatia entre quem fala e quem escuta" (SALLES, 2003, 152).

O que estaria no âmago da vida e obra de Jung? Aliás, ele dizia que não tinha criado uma teoria ou sistema. "Freud tinha uma ´teoria; eu não tenho ´teoria´, mas descrevo fatos. Eu não teorizo sobre o surgimento das neuroses, mas descrevo o que existe nas neuroses; também não tenho uma teoria sobre os sonhos, apenas indico o método que uso e os possíveis resultados (JUNG, 2018, p. 17-18). Assim, em 1º. de julho de 2016, iniciei os atendimentos clínicos, a princípio recebendo em meu consultório os pacientes encaminhados pela Clínica Ijep (https://www.ijep.com.br/index.php?sec=pags&id=232) e, desde então, recebendo cada vez mais analisandas e analisandos.

Mesmo depois de tanto estudar a prática junguiana, e já apoiada pela experiência de meu consultório, eu ainda tinha a inquietação de compreender o que havia movido Jung a trilhar seu caminho. Em 2018, adquiri a trilogia das cartas de C. G. Jung. Comecei a ler o volume 1 meio sem interesse, mas na metade já estava encantada com a escrita informal e erudita de Jung, como ele conseguia abordar temas de grande complexidade de um jeito absolutamente simples, direto, criativo e fluente. Como os diários e as entrevistas em formato pingue-pongue, as cartas nos dão a ilusão de estar ouvindo diretamente o outro.
Na carta à pastora Dorothee Hoch, datada de 28 de maio de 1952, veio o insight. "A suposição de que sou vítima de um complexo pessoal pode ser levantada, quando se sabe que sou filho de pastor (...) É verdade que eu não gostava de teologia, porque ela colocava problemas para meu pai que ele não conseguia resolver e que eu considerava injustificados" (JUNG, 2018, p. 240). Em sua resposta, Jung refutou essa hipótese: "Mas eu tive um bom relacionamento pessoal com meu pai - portanto nenhum complexo do tipo comum" (JUNG, 2018, p. 240). Teria ele, contudo, por meio de seus experimentos e obra, vivido a vida não vivida de seu pai?

Se há algo que podemos dizer com segurança é que a perspectiva junguiana é ancorada no universo cristão. "A ética depende da decisão suprema de uma consciência cristã, e a própria consciência não depende da pessoa apenas, mas igualmente da contrapartida da pessoa, isto é, Deus" (JUNG, 2018, p. 24). Não por acaso, o fenômeno religioso e a representação das imagens de Deus ocupam um lugar central em suas reflexões e, por extensão, nas suas cartas, em particular a partir do lançamento de seu livro Aion, em 1951(JUNG, 2012a), e, sobretudo, Resposta a Jó, em 1952 (JUNG, 2012b). O interesse específico de Jung estava nas representações primordiais coletivas que estão na base das diversas formas de religião, que ele chama de imagens arquetípicas. 

Haveria na psique humana uma potencialidade que impulsiona o ser humano a procurar e a se relacionar com o transcendente, seja o nome que se dê para ele/ela, em sua miríade de imagens antropomórficas cujas representações vão mudando de acordo com o tempo, o espaço e a cultura. "O termo ´Deus´ (...) expressa uma imagem ou conceito verbal que sofreu muitas mudanças ao longo de sua história. Em tal caso não temos possibilidade alguma de mostrar, com a mínima parcela de certeza que seja - a não ser a da fé - se tais mudanças se referem apenas às imagens e aos conceitos, ou se atingem o próprio inefável" (JUNG, 2012, § 555). O foco de Jung, portanto, nunca foi de natureza teológica, mas psicológica. Em outras palavras, as máscaras da eternidade, símbolos que nunca serão conhecidos totalmente, como diz o mitólogo estadunidense Joseph Campbell (1904-1987), porque velam o indizível (CAMPBELL, 1992, 2008a, 2008b, 2010). 

Assim, teria a pastora Dorothee Hoch, em 1952, apontado a motivação que teria levado Jung a desenvolver sua obra, que culminaria em Resposta à Jó? Em seu livro de memórias, editado pela analista suíça Aniela Jafé (JUNG; JAFÉ, 1989), Jung conta que em 1887, aos 12 anos, teria tido uma experiência numinosa e começado a sentir dúvidas em tudo o que seu pai dizia. "Suas palavras eram insípidas e vazias, tal como uma história contada por alguém que nela não crê, ou que só a conhece por ouvir dizer. Queria ajudá-lo, mas não sabia como. Uma espécie de pudor impedia que lhe contasse minha própria experiência, ou me imiscuísse em suas preocupações pessoais" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50).

Mais tarde, ao redor dos 18 anos, Jung narra que teria tentado por várias vezes conversar com seu pai sobre o assunto, "sempre com a secreta esperança de fazê-lo sentir algo da graça maravilhosamente eficaz e ajudá-lo em seus conflitos de consciência" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50). Ele continua: "Infelizmente nossas discussões jamais chegavam a uma solução satisfatória. Elas o irritavam e entristeciam. ‘Pois bem - costumava dizer - você só quer pensar. Mas não é isso que importa; o importante é crer. ‘E eu pensava: não, é preciso experimentar e saber; e acrescentava: ´Dê-me essa fé. Ele se erguia e ao se afastar encolhia os ombros, resignado" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50).
Teria Jung, por meio de sua prática, tentado dar uma resposta à inquietação não integrada pelo seu pai, um pastor protestante que paradoxalmente não tinha fé para compartilhar, pregando fazer o que ele mesmo não fazia?

A resposta ao pai talvez esteja expressa na memorável entrevista que Jung concedeu em sua casa em Zurique ao jornalista britânico John Freeman (1915-2014), em 1959. Freeman conduzia uma série chamada Face to Face para a BBC 4. Um ano e meio antes de falecer, ao ser questionado por Freeman se acreditava em Deus, Jung declarou "I don´t need to believe. I know" (FREEMAN, 1959). Em tradução livre: "Eu não preciso acreditar. Eu sei." Transcender o ego e se render ao self, essa contrapartida do indivíduo que é uma das premissas da análise junguiana, é a prova suprema, por assim dizer, do processo de individuação. Ou como Jung disse, com outras palavras, no terceiro volume das cartas em resposta a um primeiro anista da Northwestern University sobre a "vontade de Deus": "É o fator que decide em última instância quando tudo está dito e feito. É essencialmente algo que não podemos conhecer de antemão. Só o conhecemos após o fato". (JUNG, 2018, p. 25). A própria noção de self nasce, em alguma medida, dessa representação divina, a Imago Dei: uma "esfera infinita, cujo centro está em toda parte, e a circunferência em parte nenhuma" (JUNG, 2018b, p. 16).

Jung diz na primeira linha de suas memórias, "Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 19). Se o que o movia era viver a vida não vivida do pai, justificando por meio da experiência e do saber que não era preciso fé para compreender o mistério supremo da vida, parece por esta afirmação que ele o conseguiu, valendo-se da gnose e do empirismo científico, permitiu que o numinoso, que é simultaneamente tremendo, fascinante e misterioso, estivesse presente constantemente no final da sua existência.

Para mim, a questão não é saber se esse insight que me tomou é verdadeiro do ponto de vista factual ou não. Como Jung também disse na abertura de suas memórias, "essa é aminha aventura, a minha verdade" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 19). Do ponto de vista simbólico, essa hipótese fez sentido e me ajudou a entender melhor o cerne da busca de minha representação de Jung. Agora, finalmente, posso me aventurar no sagrado livro vermelho. Minha leitura programada para 2019 será o Liber Novus.

Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista e escritora. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com

Referências

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Blade Runner, the anima and the process of masculine individuation


Harrison Ford (Blade Runner, 1982) and Ryan Gosling (2049, 2017):
replicants in troubled love

Much has changed in the nearly four decades that separate the classic Hollywood movie Blade Runner (1982) from 2049 (2017).

When U.S. director Ridley Scott’s Blade Runner was released, it was a failure at the box office, probably due to its complex plot and futuristic noir aesthetics.

However, like a good wine, the film over time came to be considered one of the best ever made – to the point where its director even said he felt it was his best work.

The plot of the 1982 film: at the dawn of the 21st century in Los Angeles, the Tyrell Corporation has developed replicants who, being as (or more) intelligent and as strong as humans, are sent to colonize other planets. A riot leads them to be hunted on Earth by an elite squad, the Blade Runners, who give the film its name. By 2019, five replicants remain at large, and Officer Deckard (Harrison Ford) is ordered to hunt them down one by one. A love interest develops between the cop and the latest replica on his list, Rachael (Sean Young).

Cut to 2017, in the same Los Angeles as the 2049 movie. A new species of replicants is developed, apparently more obedient. Apparently… The Blade Runner now is K (Ryan Gosling), who comes across a secret: Rachael, despite being a replicant, had a child – the old fashioned myth of ​​a divine child behind the possible revolution against humans.

What both films have in common is that they address fundamental issues that guide human beings, with an emphasis on ethics and the search for the meaning of life.

Certain things, however, have not changed between the two films. One is the importance of the anima in the male’s life and, by extension, loving relationships.

And what is the anima in the context of Jungian analysis? In fact, the anima and the animus archetypes are one of the main contributions of the Swiss psychiatrist Carl Gustav Jung (1865-1961) to theories of human development.

Jungian psychotherapist Robert Hopcke states that “... Jung noted that behind the male conscious personality there seemed to be an unconscious feminine side with its own particular character and its own ways of acting” (HOPCKE, 2012, p. 104).

For Jung, this caring, emotional and spiritual side of a man could be perceived in his dreams, fantasies and projections, where he assumed the symbolic form of a woman.

Therefore, the anima would be the bridge between man and his creativity, his love, his soul – in short, his pleasure for life.

In the 1982 Blade Runner movie, Deckard surrenders to fantasy and runs off with Rachael, as if the prince had happily married the mermaid transformed into a human being by a witch in the tale The Little Mermaid by Danish writer Hans Christian Andersen (1805-1875).

2049, however, seems to be much more complex on this issue. Lieutenant Joshi (performed by Robin Wright), the boss of K, sends him to find and eliminate the child.

She says he is a man without a soul anyway. And she is right to a certain extent. K. has on his side Joi (interpreted by the Cuban model Ana de Armas). It is a virtual companion, a sophisticated Siri who interacts with him in real-time and transforms herself incredibly quickly to meet the wishes of her man.

In the blink of an eye, Joi adopts the persona of the perfect 1950s housewife, anchored in a pre-feminist world, to diligently prepare his dinner. Soon she becomes the contemporary, postmodern companion, who has a keen interest in hearing his answer to her question “What a difficult day, right?”

Brazilian psychotherapist Waldemar Magaldi always quotes Jung when he was asked how to choose the ideal partner: “Choose someone with whom you will still be talking 30 years from now”.

Despite being a replicant and a virtual woman, the couple interact beautifully in the art of conversation. Joi recalls that K needs a name, that is, to be removed from the indistinct ocean of the unconscious and become individualized; so she names him Joe. Symbolically reborn as Joe, K. recognizes the qualities of Joi, and his struggle to make their relationship work makes him, in a sense, more himself.

However, as we all know, Joi is a just a projection. Adjusting his inner image of the anima to that of the real woman out there is one of the greatest, if not the greatest, male challenge concerning relationships.

In The Cat, a tale of feminine redemption (FRANZ, 2011), Von Franz reminds us that many women get caught in this projection web that men throw at them – meaning that it is not a real relationship, but a fantasy whose spell breaks with time.

In 2049, the issue is settled with the symbolic death of Joi. The virtual feminine side sacrifices herself (in the sense of making it sacred) so that the masculine side can become himself and ready for a real relation.

In what may be the worst scene in the movie, though, K., now as Joe, fails to evolve, so to speak. On the contrary, he has a sad death, emotionally carried out by the same song that was a highlight of the 1982 film: the death of the replicant Roy (played by Hutger Hauer).

In 1982, the death of the replicant symbolized life’s ephemerality (https://www.youtube.com/watch?v=chIP3AvqLDo ). “I’ve seen things you people wouldn’t believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die.”

In 2017, however, K´s death only prevents him from going out there and living a real love, with all the delights and the scars that that entails. Like Antoine de Saint-Exupéry´s Little Prince, who doesn´t want to become a grown up and lets himself be killed by a snake. Yes, nobody said it was going to be easy…

Acknowledgements
I would like to thank Bruna Camargo for the translation and John S. Bak for the English text revision

References
FRANZ, M.-L. VONZ. O gato: um conto da redenção feminina. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011.
HOPCKE, R. H. Guia para a obra completa de C. G. Jung. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Blade Runner e os conteúdos simbólicos femininos no processo de individuação masculina


Anima: uma ponte com o inconsciente da psique masculina

Trinta e cinco anos separam 2049, de 2017, do clássico Blade Runner, de 1982. Muita coisa mudou nessas quase quatro décadas. Naquela época, por exemplo, quando se conseguia comprar uma linha de telefone, tinha-se direito a ações. Havia televisão pública no Brasil de qualidade e a Internet ainda era restrita às ficções científicas.
Para refrescar a memória, voltemos à 1982. Ao ser lançado, Blade Runner, dirigido por Ridley Scott, foi um fracasso nas bilheterias dos Estados Unidos provavelmente devido à sua estética futurista noir e temática complexa.
Com o tempo o filme passou a ser considerado um dos melhores filmes já feitos - a ponto de seu diretor dizer que talvez tenha sido sua melhor obra. O que fez com que as sete versões que o clássico teve desde então causassem ondas de amor e ódio entre críticos e público.
A trama do filme de 1982: no início do século 21, em Los Angeles, a corporação Tyrell desenvolve replicantes que, por serem tão (ou mais) inteligentes e fortes que os seres humanos, são enviados para a colonização de outros planetas. Um motim leva-os a serem caçados na Terra por um esquadrão de elite, os Blade Runner que dão nome à película. Em 2019, restam cinco deles, que serão caçados pelo policial Deckard (Harrison Ford). O eixo amoroso aqui é conduzido pelo policial com a última replicante de sua lista, Rachael (Sean Young).
Corte para 2017, na mesma Los Angeles do filme 2049. Uma nova espécie de replicantes é desenvolvida, aparentemente mais obediente. O Blade Runner agora a caçar os que saem da linha é K (Ryan Gosling), que se depara com um segredo: Rachael, apesar de ser uma replicante, teve um filho - ideia mítica da criança divina que na trama leva a uma possibilidade de revolução na linha do "vamos conquistar o mundo dos humanos". Que a julgar pelo cenário dark do filme não estão lá fazendo muita coisa de bom com o planeta mesmo.
Em comum, ambos os filmes abordam questões fundamentais que norteiam o ser humano, com destaque para ética e a busca do sentido para a vida.
Há coisas, no entanto, que não mudaram nestas quase quatro décadas. Uma delas é a importância da anima na vida masculina e, por extensão, nos relacionamentos amorosos.
E o que é anima em análise junguiana? Na verdade, a dupla anima e animus como arquétipos do inconsciente coletivo são uma das principais contribuições do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1865-1961).
O psicoterapeuta junguiano estadunisende Robert Hopcke explica que "... Jung observou que, por trás da personalidade consciente masculina, parecia haver um lado feminino inconsciente com seu próprio caráter particular e seus próprios modos de agir" (HOPCKE, 2012, p. 104).
Para Jung, este lado mais caloroso, emotivo e espiritual de um homem podia ser percebido em seus sonhos, fantasias e projeções, onde assumia a forma simbólica de uma mulher.
Logo, a anima seria a ponte entre o homem e sua criatividade, sua amorosidade, seu prazer pela vida, enfim, sua alma.
No filme Blade Runner, de 1982, Deckard se rende à fantasia e foge com Rachael. Como se o príncipe tivesse se casado com a sereia transformada em ser humano do conto A Pequena Sereia, do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875).
Segundo a psicoterapeuta analítica alemã Marie Louise von Franz (1915-1998), Andersen tinha lá suas neuroses relativas a relacionamentos amorosos, tanto que nunca se casou.
2049, no entanto, parece ser bem mais complexo nesta questão. A tenente Joshi (interpretada pela sempre ótima Robin Wright), chefe de K, o envia para encontrar e eliminar a criança. Em dado momento, diz que ele é um homem sem alma.
Ela tem razão. Mas até certo ponto. K. tem a seu lado Joi (interpretada pela modelo cubana Ana de Armas). Trata-se de uma acompanhante virtual, uma Siri que interage em tempo real e se transforma rapidamente para atender às vontades de seu homem.
Em um piscar de olhos, Joi transita pela persona da dona-de-casa perfeita dos anos 1950, ancorada num mundo pré-feminista, a preparar diligentemente o jantar de ambos. Para logo se tornar a companheira contemporânea, pós-moderna, com ouvido pronto para escutar a resposta à pergunta "what a day" - que dia difícil o seu, né?.
O psicoterapeuta Waldemar Magaldi sempre lembra que, ao ser questionado sobre como escolher o parceiro ideal, Jung respondeu: "Escolha alguém com quem você terá o que conversar daqui a 30 anos".
Apesar de serem um replicante e uma mulher virtual, eles interagem lindamente na arte da conversação. Joi lembra que K precisa de um nome, isto é, de ser tirado do plano do oceano indistinto do inconsciente e individualizado, batizando-o de Joe. K, simbolicamente renascido como Joe, reconhece as qualidades de Joi, e sua luta pela relação o faz ser mais ele mesmo.
Todavia, como sabemos, Joi é uma projeção. Tanto que um dos pontos altos do filme é a cena de amor entre os dois, da qual não falaremos mais aqui para não dar spoiler.  Ajustar a imagem da anima à da mulher real é um dos maiores, senão o maior, desafio masculino.
Em O Gato: conto da redenção feminina (FRANZ, 2011), Von Franz lembra que muitas mulheres ficam presas nessa rede da projeção que os homens podem lançar sobre elas.
Em 2049, a questão é resolvida com a morte simbólica de Joi. Mas atenção! No maior clima de alteridade, onde o feminino virtual se sacrifica (no sentido de tornar sagrado) para que o masculino possa se tornar ele mesmo a partir de uma relação real.
Na que talvez seja a pior cena do filme, contudo, K., agora Joe, tem uma morte triste ao som da mesma música que no primeiro filme, embalava a triunfal morte do replicante Roy (interpretado pelo ótimo Hutger Hauer).
Em 1982, a morte do replicante simbolizava a efemeridade da vida de replicantes, mas também, e porque não, dos humanos que não tinham consciência de estar em processo de individuação (https://www.youtube.com/watch?v=chIP3AvqLDo). Em português: "Eu vi coisas que vocês humanos nunca acreditariam. Ataquei naves em chamas nas bordas de Orion. Observei Raios-C brilharem na escuridão dos ares dos Portões de Tannhauser. Todos estes momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva: hora de morrer.
Em 2017, no entanto, a morte de Joe - que o impede, portanto, de viver um amor real - parece simbolizar somente a falta de interesse dos produtores de fazer uma trilogia. Talvez uma simbologia per se de que a grande questão atual segue sendo, para todos, a das relações amorosas no contexto da alteridade.

Referências
FRANZ, M.-L. VONZ. O gato: um conto da redenção feminina. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011.
HOPCKE, R. H. Guia para a obra completa de C. G. Jung. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

* Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista, jornalista, escritora, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pós-doutorado pela Umesp. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com

Para citar este artigo
MARTINEZ, Monica. Blade Runner e os conteúdos simbólicos femininos no processo de individuação masculina. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=385&ref=blade-runner-e-os-conteudos-simbolicos-femininos-no-processo-de-individuacao-masculina#conteudo>. Acesso em: 14 dez. 2018.