terça-feira, 13 de junho de 2017

Príncipes que viram sapos, belas que se tornam feras


A aceitação do outro como é pode tornar o parceiro amoroso melhor do que parecia ser 


Tenho uma colega que, em certa época, trabalhou com revisão de romances populares. Segundo ela, os pequenos livros eram planejados numa estrutura padrão. No início havia sempre algo que impedia que a heroína gostasse do protagonista, em geral apresentado com qualidades, como beleza física, nobreza de caráter e prosperidade econômica - atributos devidamente evidenciados num cenário exótico. Lá pelo terceiro capítulo havia uma guinada que levava a um relacionamento sexual, não raro tórrido. Ao redor do quarto ou quinto capítulo, outro acontecimento levava a jovem a conhecer melhor o herói e até aceitar um relacionamento, muitas vezes "contra sua vontade" -algo como casar com o moço bom, bonito e rico para salvar um pai da falência. Próximo do sétimo ou oitavo capítulo, havia um turning point na história que levava a mocinha a descobrir que seu amor verdadeiro estava ali, ao seu lado. A partir daí era seguir o caminho para o final feliz - condição sine qua non, afinal a consumidora comprava o livro justamente pela garantia de que o desfecho não a decepcionaria.

E minha colega ia revisando as histórias, que de novo só traziam o local onde se desenrolavam os fatos e os nomes dos protagonistas. Até que certo dia lá estava ela a revisar o romance do mês quando notou que já havia passado da metade do livro e nenhum dos conflitos previsíveis da história havia acontecido.  Ela começou a revisar o sétimo capítulo e, qual não foi sua surpresa ao ler as palavras iniciais: "E, então, Steve mudou". O(a) autor(a), provavelmente, havia se esquecido de articular a trama, já tinha avançado por uns três capítulos e talvez não quisesse jogar fora o material, decidindo então "forçar" o mocinho a uma guinada súbita, sem maiores explicações, apenas para manter a estrutura desse tipo de romance e agradar sua leitora.

É óbvio que guinadas nos scripts amorosos (AMÉLIO; MARTINEZ, 2005) eventualmente acontecem na vida, mas embora pareçam abruptas aos olhos dos demais o fato é que elas foram cozinhadas no fogo lento dos processos psíquicos.

Há vários fenômenos envolvidos nesse processo de estruturação do ego da criança - entendido no contexto junguiano como um complexo, uma carga emocional constelada ao redor do núcleo formado por uma imagem arquetípica a partir das experiências pessoais de cada indivíduo. Na criança, a representação do feminino e do masculino é formada a partir da mãe.

O menino terá o modelo do feminino (anima) formado a partir da relação consciente com o ego da mãe ou a figura que exercer este papel de maternagem. Por isso, o menino tem uma figura de feminino bem definida - a anima é uma unidade. Daí a fantasia da "musa": ao entrar na adolescência, o jovem sabe que tipo de mulher busca com precisão.

No caso da menina, a representação do masculino (animus) é oriunda do inconsciente da mãe (animus) ou de quem exercer este papel, sendo que Jung dizia que não se tratava de uma figura única, mas de uma legião. Não há, portanto, a fantasia de um "muso". Assim, ao entrar na adolescência, a jovem não tem um modelo de homem tão definido, mas pode se apaixonar por várias facetas do masculino.

Essas imagens arquetípicas - que serão essenciais no relacionamento amoroso - vão sendo construídas a partir da experiência que a criança tem com os pais e em como eles reagem em suas relações e com seu entorno. No caso de ter se sentido abandonada, por exemplo, a criança reagirá como se o mundo fosse ruim. Bem cuidada, como se o mundo fosse um lugar bom, onde se pode viver sem medo. É óbvio que a criança não está numa bolha, mas inserida num contexto social. De toda forma, tratam-se de interpretações. O risco é o de a psique do adulto permanecer no estágio infantil, representada na criança que espera que haja alguém sempre pronta a estender a mão para apoiá-la em caso de queda, para satisfazer suas vontades e tomar conta dela.

As representações ligadas ao universo parental começam a ser revistas a partir da puberdade, quando gradualmente começam a ocorrer as primeiras vivências amorosas. No começo, em geral, os relacionamentos amorosos ainda são platônicos, ganhando uma materialidade com o passar dos anos, em geral de acordo com o tempo histórico e social no qual o(a) jovem está inserido(a).

O interessante é que as relações amorosas - parte integrante desta busca pelo sentido que se dá por meio da experimentação consciente da vida - é como um jogo de dois tempos. No primeiro tempo, vamos dizer dos 12 até o redor dos 40 anos, o foco está na formação da identidade, passando pela construção dos corpos físico, emocional e mental, que são ancorados nas esferas social e histórica.

Ao longo dessa primeira fase da idade adulta, o(a) jovem em tese começa a testar suas asas para se descolar da família de origem e consolidar seu próprio núcleo familiar; conquista seu espaço no mundo profissional, alguns até conseguem usar  seus recursos extras, seja de tempo ou econômicos, para apoiar serviços sociais. Nessa fase, o relacionamento amoroso se alimenta das sombras projetadas inconscientemente no outro, nas habilidades nubladas, nos pontos não desenvolvidos, enfim, nos aspectos ainda desconhecidos do jovem que serão projetados como numa tela no parceiro.

A analista junguiana alemã Marie-Louise von Franz (1915-1998) explica:

Filhos ou filhas que vivenciaram o pai como autoritário (quer ele efetivamente o tenha sido ou não) apresentam a tendência de projetar sobre todas as autoridades paternas - como um professor, um pastor, um médico, um chefe, o Estado e até mesmo a imagem de Deus - a propriedade negativa "autoritária" e de reagir diante delas de maneira correspondentemente defensiva". Aquilo que é projetado, contudo, quando examinado mais de perto, não é de modo nenhum apenas uma imagem da lembrança do pai, mas representa a tendência autoritária do próprio filho ou filha (FRANZ, 2011).

Segundo o analista junguiano estadunidense John A. Stanford (1929-2005), quando um homem e uma mulher projetam respectivamente sua anima e seu animus um no outro, ocorre o processo de fascinação mútua conhecido como "ficar apaixonado"(STANFORD, 1980).
Figura 1: O Esquema de projeção proposto por Stanford (1980)

Nada como um dia após o outro e a intensa convivência para o príncipe encantado virar sapo, ou a princesa virar rã. A projeção que uniu o casal-até-que-a-morte-nos-separe cai por terra e, por trás dela, surge o outro como ele é - ou sempre foi.  Como uma projeção só pode ser trocada por outra, não é difícil neste momento ocorrer o "apaixonamento" por um(a) terceiro(a), tela nova no qual a projeção pode novamente ser feita.

Quanto mais a pessoa se conhece, em tese menos projetaria seus conteúdos inconscientes nos outros, uma vez que estaria em processo de tomar consciência desses conteúdos desconhecidos em si mesma. Von Franz chega a apontar os cinco estágios desse jogo de projeção: 1) a pessoa se convence de que a experiência interior e inconsciente é uma realidade externa; 2) ocorre a percepção de que há uma discrepância entre a imagem projetada e a realidade; 3) a pessoa reconhece esta discrepância; 4) o indivíduo reconhece que estava errado; 5) a pessoa passa a buscar o significado dessa projeção em si mesmo e não no outro (Von Franz apud HOLLIS, 2015, p. 47).

Caso a pessoa consiga integrar suas sombras por meio de processos psicoterápicos, ela mudará, ainda que gradualmente. Pode ocorrer, neste caso, de seu parceiro resistir à mudança, levando ao conflito e, às vezes, ao fim da relação. 
Para o analista junguiano estadunidense James Hollis, são dois os desafios da meia idade, que ele chama de "caminho do meio". O primeiro é o encontro com a limitação, com o enfraquecimento e com a mortalidade. Não deixa de ter relação, portanto, com a imagem do trio que tocou Buda e levou-o à saga da iluminação: a noção de que não há como vencer, na materialidade, a velhice, a doença e a morte.

A segunda maior deflação das expectativas da meia-idade, segundo ele, é o encontro com as limitações dos relacionamentos" (HOLLIS, 2015, p. 47):

O Outro Íntimo que satisfará nossas necessidades, que tomará conta de nós, que sempre estará presente para nos apoiar, é finalmente visto como pessoa comum, como nós mesmos, também necessitada, e que projeta sobre nós expectativas bastante semelhantes às nossas. Os casamentos frequentemente terminam na meia-idade, e uma das principais causas é a enormidade das esperanças infantis que se impõem sobre a frágil estrutura existente entre duas pessoas. Os outros não satisfarão e nem podem satisfazer as necessidades grandiosas da criança interior, de modo que somos deixados, e sentindo-nos abandonados e traídos (HOLLIS, 2015, p. 47).

Como ele aponta, a salvação, a cura, não está lá fora. "A vida tem uma maneira de dissolver as projeções e precisamos, em meio ao desapontamento e ao desconsolo, começar a assumir a responsabilidade pela nossa satisfação" (HOLLIS, 2015, p. 47).

Para o analista junguiano, "(...) existe uma excelente pessoa dentro de nós, alguém que mal conhecemos, e que está pronta e disposta a ser a nossa constante companheira (HOLLIS, 2015, p. 47-48). Uma possível analogia, talvez, fosse a protagonista de A Bela e a Fera, que entrou recentemente em cartaz na versão cinematográfica que traz no papel principal a atriz inglesa Emma Thompson - mais conhecida como a Hermione da saga Harry Potter.

Escrita em 1740 pela francesa Gabrielle-Suzanne Barbot, Dama de Villeneuve, e adaptada em 1756 por Jeanne-Marie LePrince de Beaumonta história também é conhecida pelo título A Bela e o Monstro. A essência da obra é a de que a aceitação do outro como ele realmente é faz com que o parceiro amoroso revele-se melhor do que aparentemente é ou parecia ser, pelo menos aos olhos da companheira.

Por extensão, seria apenas quando abandonamos as expectativas e birras da criança que há em nós e que aceitamos a responsabilidade de crescer e buscar em nós mesmos o significado que move nossa vida, confiando que nossa psique nos mostrará o caminho, que poderíamos finalmente tentar viver de uma forma madura.
Isso não significa que tudo será perfeito. Mas, ao menos, que não apontaremos um dedo para o outro quando os demais quatro dedos da mão em forma de arma apontam para nós mesmos.

Quando a cortina do palco das projeções cai, o outro pode passar de vilão a ser o aliado companheiro - com seus defeitos inclusos - dessa maravilhosa jornada rumo ao mistério e ao desconhecido de que é feita a vida, que só pode ser experenciada por meio do assombro, da gratidão, da reverência - e, claro, de muita tolerância e paciência. Sim, "e Steve mudou" da água para o vinho, de uma hora para outra, é uma fantasia que acontece apenas nos romances escritos com linhas mal alinhavadas.

Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista, escritora, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pós-doutorado pela Umesp. Realizou estágio pós-doutoral na Universidade do Texas em Austin. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. Email: analisejunguianasp@gmail.com


Referências
AMÉLIO, A.; MARTINEZ, M. Para viver um grande amor. São Paulo: Gente, 2005.
FRANZ, M.-L. VONZ. Psicoterapia. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
HOLLIS, J. A passagem do meio: da miséria ao significado da meia-idade. 11. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
STANFORD, J. A. The invisible partners: how the male and female in each of us affects our relationships. New Jersey: Paulist Press, 1980.

Para citar este artigo
MARTINEZ, Monica. Príncipes que viram sapos, belas que se tornam feras. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <http://ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=299&ref=amor-na-perspectiva-da-psicologia-anal%EDtica-pr%EDncipes-em-sapos;-belas-em-feras#conteudo>. Acesso em: 14 jun. 2017.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Por mais diálogo entre as áreas de Psicologia e Comunicação


Quais são os processos de comunicação que ocorrem durante uma sessão de terapia? E quando um jornalista faz uma entrevista, seja as breves ou, principalmente, projetos de longo prazo que demandam anos de interação?

O modo como esse fenômeno será interpretado depende muito do ponto de vista da área onde o observador está situado.

Do ponto de vista etimológico, a palavra Comunicação advém do latim, "communicationem", que desde o século XV significa "ação de tornar comum". Sua raiz é o adjetivo communis, comum, que quer dizer "pertencer a todos ou a muitos". E o verbo é communicare, comunicar, que significa "tornar comum, fazer saber".

Ao longo do tempo, contudo, sobretudo com o desenvolvimento dos meios de comunicação, a palavra foi incorporando o sentido de transmitir, passar algo de A para B, como em tese ocorre com o envio de uma carta ou quando assistimos a um programa de televisão.

Após a Segunda Guerra Mundial, foram comuns os estudos que tentavam mapear se e como seria possível persuadir os indivíduos para ficarem mais receptivos às mensagens publicitárias.

Atualmente os teóricos em Comunicação defendem que estas teorias que envolvem a noção de manipulação são obsoletas, pois partem do princípio de que o ser humano é totalmente passivo. Sabe-se hoje que a mídia é uma das esferas de influência, como a família e as diversas comunidades que as pessoas pertencem, como a laboral e a religiosa.

Sabe-se, também, que as classificações tradicionais entre comunicação interpessoal, organizacional e de massa estão em intenso processo de convergência desde o final dos anos 1990, com a expansão da Internet.

Vivemos uma época em que a mídia social e os grandes meios de transmissão se conectam de uma forma sem precedentes, de maneira cada vez mais simples e intuitiva. Basta um clique no smartphone ao postar algo no Facebook e um amigo que trabalhe num jornal pode achar interessante e o post virar uma pauta midiática. E vice-versa.

Contudo, os estudos da área de Comunicação ainda privilegiam a análise de processos que ocorrem por meio de aparatos midiáticos. Um exemplo seria o que ocorre na recepção de um programa de uma emissora de televisão.

Mesmo nos processos comunicacionais que envolvem o ser humano, o aspecto psicológico é pouco compreendido, porque pouco estudado ou visto no viés de abordagens psicológicas que estão mais preocupadas com a superfície dos fenômenos.

Uma abordagem jornalística clássica, investigativa, em geral ainda está presa a uma visão predominantemente positivista, moderna, explicativa, mecanicista, cartesiana. O jornalista, de forma legítima, busca "a verdade".

Outras áreas do conhecimento, como a História Oral e a Psicologia, compreendem que essa noção de verdade é subjetiva. Muitos historiadores orais trabalham com o conceito de ucronia, isto é, que é uma verdade "possível" para dadas circunstâncias que o indivíduo pode ter achado intolerável, como um prisioneiro de um campo de concentração.

A noção de verdade psicológica, mais ampla, preconiza que se algo está trazendo um sofrimento psíquico é porque, para aquele ser, naquele dado momento, aquilo é real. É a partir desta base que será trabalhado, não como uma mentira.

Em uma entrevista jornalística, sobretudo nos processos de apuração de longa duração, entrevistado(a) e jornalista envolvidos sairão transformados em alguma medida. Porém esse processo não é feito nem estudado de forma consciente.

Um livro seminal de como este processo pode ter repercussões dramáticas para o jornalista é O Segredo de Joe Gould(Companhia das Letras). A obra foi escrita pelo escritor estadunidense Joseph Mitchell (1908-1996) para a revista The New Yorker numa época em que as apurações levavam até três anos.

Joe Gould (1889-1957) era um "sem teto" atípico. Nascido numa família aristocrática de Boston, nos Estados Unidos, estudou - como seu avô e pai - medicina em Harvard. Distúrbios psicológicos o levaram a não conseguir se inserir no meio social. Devido às suas relações sociais, ele se tornou um boêmio que alternava internações com a vida em albergues em Manhattan sustentada à base de "contribuições" de celebridades como o autor e. e. cummings.

Mitchell projetou-se de tal forma no carismático sem teto que "mentia" sobre ter escrito uma obra maior que a Bíblia que sofreu um bloqueio de escrita que durou de 1964 a 1996, ano de seu falecimento.

Mitchell também não havia "cumprido" a vontade paterna de cuidar da fazenda familiar, também se sentia um peixe fora d´água em Nova York (os perfis que trabalhava expressavam isso, com relatos de mulheres barbadas, coveiros e outros anônimos), também tinha na cabeça um grande romance que jamais chegou a colocar no papel.

Por 32 anos, diariamente, Mitchell ia para a redação. Os colegas de trabalho ouviam o tac-tac-tac da máquina de escrever ao longo do dia. E ele recebia o salário integralmente ao final do mês. Quando faleceu, os colegas correram revirar seu escritório, na esperança de achar uma produção fenomenal. Não encontraram sequer uma linha.

Num caso deste, o analista junguiano compreende que há interações de vários níveis que podem estar acontecendo entre ele e o(a) analisando além da comunicação consciente. Os egos do paciente e do analista podem estar em contato com os respectivos inconscientes. Os egos de ambos também podem afetar seus respectivos inconscientes.  E ambos podem estar sujeitos à influência do inconsciente de cada um.

Nesse caso, podemos supor que o inconsciente coletivo de Gould transbordou de tal forma para o inconsciente de Mitchell que este, já fragilizado, não deu conta da relação. Naufragou neste mar profundo e intenso.

Tanto a área de Comunicação como a de Psicologia já sabem de seus limites, e que não são capazes de explicar todos os fenômenos. Contudo, o diálogo entre especialistas de ambos os campos pode ser salutar para o avanço destas duas ciências no século XXI, notadamente no período tão complexo pelo qual transita nossa civilização.  

Monica Martinez, ítalo-brasileira, é especialista em Psicologia Junguiana pelo IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, jornalista, escritora, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pós-doutora pela Umesp. Realizou estágio pós-doutoral na Universidade do Texas em Austin. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. Contatos:analisejunguianasp@blogspot.com. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com

Para citar este artigo
MARTINEZ, Monica. Por mais diálogo entre as áreas de Psicologia e ComunicaçãoInstituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: http://ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=269&ref=por-mais-dialogo-entre-as-areas-de-psicologia-e-comunicacao#conteudo. Acesso em: 16 set. 2016.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Enfim, um feliz dia dos pais

A paciente X é filha do segredo, isto é, a mãe lhe contou, quando atingiu a maioridade, que seu pai era outro que não o marido dela.
Num caso deste, o analista junguiano possivelmente trabalhará conteúdos associados ao complexo paterno e, claro, materno, que levam a moça a "jogar" com o amor paterno do pai "adotivo" e a hesitar em assumir seu papel social, ingressando numa universidade.
Ora, uma das críticas às psicoterapias - e igualmente a alguns métodos em outras áreas do conhecimento, como a análise do discurso em Comunicação - seria a de não levar em consideração elementos sócio-históricos.
Vamos voltar ao caso. A garota está inserida no século XXI, na maior metrópole latino-americana, tendo sido criada numa família de classe média baixa, de condições humildes.
Se formos analisar o caso tomando em consideração o aspecto histórico, teríamos de lembrar que se trata de alguém imerso numa cultura patrilinear. O pai, no caso, assume o papel de provedor, uma vez que a mãe não exerce uma atividade remunerada fora do lar.
Historicamente, fazemos parte de uma nação ainda predominantemente machista, no qual a mulher ocupa uma posição pública considerada por muitos como "menor" do que o homem.
Neste contexto, o adultério feminino é considerado mais sério do que o masculino - ainda que, convenhamos, o próprio Jesus teria perdoado uma adúltera com o argumento de que todos têm suas falhas.
Se voltássemos no tempo das culturas celtas ou das míticas Amazonas, por exemplo, com sua gestão matrilinear, essa questão seria irrelevante e não causaria psicopatologias na moça.
Uma vez que, imersa numa cultura diferente, não só ela mas várias outras seriam fruto de uniões semelhantes porque o hábito social era o de as mulheres procurarem um parceiro quando desejavam ter prazer ou gestar um filho.
Em tese, aplicar o modelo matrilinear à análise da moça no século XXI, naturalmente, não resolveria a questão. Seria mais ou menos como tentar rodar um Windows 10 num antigo computador 486 - não há diálogo entre o hardware antigo e o software novo.
Por essa linha de raciocínio, um caminho possível seria conscientizar sobre as linhagens matrilineares, as patrilineares e a necessidade contemporânea de entender os gêneros numa perspectiva de relação, onde um não existe sem o outro, preferencialmente em equilíbrio.
Nesse caso, podemos dizer que o esclarecimento do contexto sócio-histórico seria benéfico. Contudo, não bastaria. Limitar-se aos índices e signos de uma sociedade em um dado tempo e espaço não é suficiente para compreendê-la.
É por isso que, para dar conta da complexidade contemporânea, só mesmo o símbolo poderia ajudar de uma forma mais integral na tentativa de compreensão do ser humano.
O que é símbolo? Trata-se de algo cujo significado transcende suas bordas, suas fronteiras. Dois troncos de uma árvore unidos em ângulos de 90 graus formam uma cruz. Mas o simbolismo da cruz pode ter leituras distintas em culturas diferentes.
A cruz celta, por exemplo, em seu hibridismo cultural, traz tanto a raiz cristã quanto o círculo, que nesta tradição simboliza o ciclo da vida.
A análise junguiana preconiza o processo de conscientização de conteúdos inconscientes pessoais, que emergem ao longo das sessões, a partir da perspectiva do paciente.  Já conteúdos simbólicos de caráter arquetípico, mais profundos, são ampliados com o auxílio do analista, que deve ter um bom repertório de variadas mitologias.
Sem isso, corre-se o risco de as sessões gravitarem apenas em torno do ego - o centro da consciência -, representado por queixas, diagnósticos de transtornos mentais e/ou fenômenos que impactam o indivíduo inserido na sociedade contemporânea. O que não atende a necessidade de compreender o norte que o self - entendido na psicologia junguiana como o centro e a totalidade psíquicas - deseja.
O self pode se manifestar de várias formas. Na psicologia junguiana, em geral se observam as sincronicidades, os sintomas e os sonhos trazidos espontaneamente ao consultório pelo paciente ou o resultado de "lições de casa" que envolvem expressões criativas, como pinturas.
A conclusão é a de que um analista com esta visão ampliada talvez pudesse ajudar a jovem a romper o ciclo de perceber-se como uma vítima, excluída socialmente e focada em suas psicopatologias.  
Ao despotencializar este complexo, ela poderia se sentir agradecida pelo pai "adotivo", que lhe deu as bases necessárias para que ela seja um ser humano integrado como indivíduo e como parte de uma família, capaz de contribuir socialmente e até ajudar outras pessoas.

Monica Martinez, ítalo-brasileira, é especialista em Psicologia Junguiana pelo IJEP, jornalista, escritora, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pós-doutora pela Umesp. Realizou estágio pós-doutoral na Universidade do Texas em Austin. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. Contatos: analisejunguianasp@blogspot.com. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com

Originalmente publicado no site do Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep) em 10 de agosto de 2016. Este e outros artigos estão disponíveis em: http://ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=264&ref=enfim-um-feliz-dia-dos-pais#conteudo.

MARTINEZ, Monica. Enfim, um feliz dia dos pais. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: http://ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=264&ref=enfim-um-feliz-dia-dos-pais#conteudo. Aceso em: 10 ago. 2016.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

O tornar-se si mesmo


            Jung chamou de individuação esse processo de o indivíduo tornar-se o Homo Totus (JUNG, 2012, §853), uno consigo mesmo − no qual o eu individual se relaciona com o arquétipo do Si-mesmo ou a Imago Dei, a imagem de Deus em nós ou onde somos semelhantes a Deus:

O conceito de individuação desempenha papel não pequeno em nossa psicologia. A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É, portanto, um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual. (JUNG, 2012, §853).

            Para o psicoterapeuta junguiano Paulo Ruby:

O desenvolvimento psicológico, dentro da visão junguiana, segue uma necessidade progressiva de diferenciação do ego que deriva de um centro chamado self (si mesmo), considerado o arquétipo central do inconsciente coletivo que coordena o desenvolvimento através de outros arquétipos. O self é o centro da personalidade, mas também a própria totalidade psíquica que abrange consciente e inconsciente − é o centro dessa totalidade, assim como o ego é centro da consciência. O self tem uma função teleológica conhecida como processo de individuação. Enquanto o ego tem uma atuação no mundo consciente, o self  tem uma atuação mais ampla dentro da experiência do ser humano através dos símbolos, que são imagens arquetípicas. Não nos relacionamos diretamente com os arquétipos, mas sim com suas representações imagéticas − produtos espontâneos que possuem um propósito e um fato curador (RUBY, 1998, p. 22-23).

Referências
JUNG, Carl Gustav.  Tipos psicológicos. 6. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2012. 614 p. (OC 6).

RUBY, Paulo. As faces do humano: estudos de tipologia junguiana e psicossomática. São Paulo: Oficina de Textos, 1998. 95p.