Para
o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), o objetivo do tratamento de
neuroses seria o de estalecer a harmonia possível entre o consciente e o
inconsciente.
O estudo dos sonhos e a
consequente proposição de um método para emprego na prática terapêutica foi uma
tarefa à qual Jung se dedicou ativamente ao longo da vida.
Não é uma prática simples, nem
a ser feita de forma leviana. Em um texto publicado na revista Ciba em
1945 – portanto quando ele tinha já tinha 70 anos – Jung dizia:
A compreensão do sonho, de
fato, é um trabalho tão difícil, que há muito tempo eu estabeleci como regra,
quando alguém me conta um sonho e pede minha opinião, dizer, antes do mais, a mim
mesmo: `Não tenho a mínima ideia do que este sonho quer significar. Após esta
constatação, posso me entregar ao trabalho da análise propriamente dita do
sonho (JUNG, 2012a, § 533).
Jung propunha quatro funções
para os sonhos, dividindo-as nas seguintes categorias: compensadores, redutores
ou retrospectivos, reativos e prospectivos (JUNG, 2012a, § 499).
1)
Sonhos compensadores: o psiquiatra suíço dizia que os sonhos "comportam-se como
compensações da situação da consciência em determinado momento" (JUNG,
2012a, § 487). Pois isso, para analisá-los corretamente, é preciso
"possuir um conhecimento acurado da consciência neste preciso momento,
porque o sonho encerra o seu complemento inconsciente, ou seja, o material
constelado com o estado momentâneo da consciência" (JUNG, 2012a, §
477).
2)
Sonhos redutivos ou retrospectivos: Jung entendia que
certos sonhos tentam autorregular a psique de indivíduos "cuja atitude
consciente e esforço de adaptação ultrapassam as capacidades individuais, ou
seja, parecem melhores e mais valiosos do que são na
realidade" (JUNG, 2012a, § 496). Ele tenderia "a desintegrar, a
dissolver, depreciar, e mesmo destruir e demolir" (JUNG, 2012a, §
496). A função negativamente compensadora, também chamada de função redutora do
inconsciente, teria um efeito salutar, pois afetaria positivamente apenas a
atitude, não a personalidade do sonhador. Em outras palavras, "baixaria
sua bola", desinflando o ego.
3)
Sonhos reativos: Jung alerta que esse tipo de sonho, que parece ser apenas a
reprodução de uma experiência consciente carregada de afeto, demanda a
investigação do "aspecto simbólico que escapou ao sujeito e que é o único
fator que provoca a reprodução onírica desta experiência" (JUNG,
2012a, § 499). Ele os diferencia dos sonhos de vítimas de guerras, por exemplo,
que desencadeiam "muitos sonhos reativos puros nos quais o trauma é
o fator mais ou menos determinante" (JUNG, 2012a, § 499). "A
análise (...) pode resolver a questão porque, nesse caso, a reprodução da cena
dramática se interrompe se a interpretação é correta, ao passo que a reprodução
reativa não é afetada pela análise do sonho" (JUNG, 2012a, § 501).
4)
Sonhos prospetivos: segundo Jung, a função prospectiva sugere uma
antecipação, oriunda do inconsciente, de atividades conscientes futuras. Não
raro, constitui um esboço de solução de um conflito. "Seria injustificado
qualificá-los como proféticos, pois, no fundo, não são mais proféticos do que
um prognóstico médico ou metereológico", aponta Jung(JUNG, 2012a, § 493).
Seriam uma combinação de possibilidades que podem ou não concordar, parcial ou
integralmente, com o curso real que os acontecimentos tomarão. Como teriam o
potencial de combinar percepções, pensamentos e sentimentos, bem como vestígios
subliminares da memória que não se encontram mais na consciência, do ponto de
vista de prognóstico "o sonho se encontra muitas vezes em situação mais
favorável do que a consciência (JUNG, 2012a, § 493).
Apresentado
este sistema analítico, vamos agora comentar três sonhos que focam na função
prospectiva.
O primeiro deles, que usaremos
aqui como exemplo, foi relatado pelo próprio psiquiatra no artigo de 1945 (JUNG,
2012b § 542):
Certa vez tratei um jovem que me contou, na
anamnese, que estava noivo, e de uma maneira muito feliz, de uma jovem de
"boa família". Nos sonhos, a personagem desta jovem assumia muitas
vezes um aspecto pouco recomendável. Do exame do contexto deduziu-se que o
inconsciente do paciente associava à figura da noiva toda espécie de histórias
escandalosas, provenientes de outra fonte, o que lhe parecia absolutamente
incompreensível e a mim naturalmente não menos também. A repetição constante
destas combinações me levou, contudo, a concluir que existia no rapaz, apesar
de sua resistência consciente, uma tendência inconsciente em fazer sua noiva
aparecer sob essa luz equívoca. Ele me disse que, se tal coisa fosse
verdadeira, isto representaria para ele um autêntico desastre. Sua neurose se
manifestara algum tempo depois da festa do noivado. Embora me parecessem inconcebíveis
e sem sentido, as suspeitas a respeito da sua noiva me pareciam constituir um
ponto de importância tão capital, que eu lhe aconselhei a fazer algumas
investigações a respeito. As pesquisas mostraram que as suspeitas eram fundadas
e o "choque" causado pela descoberta desagradável não só não abateu o
paciente, mas o curou de sua neurose e também de sua noiva. (JUNG, 2012b §
542).
Para Jung, os sonhos podem
apresentar três possibilidades. A primeira é a compensatória: "Se a
atitude consciente a respeito de uma situação dada da vida é fortemente
unilateral, o sonho adota um partido oposto" (JUNG,
2012b § 546), o que parece ter sido o caso da noiva de
"boa família", como se dizia na época. A segunda possibilidade é a
complementar, quando "a consciência guarda uma posição que se aproxima
mais ou menos do centro, o sonho se contenta em exprimir variantes (JUNG,
2012b § 546). Já se a atitude consciente é
adequada,"o sonho coincide com esta atitude e lhe sublinha assim as
tendências, sem perder a autonomia que lhe é própria" (JUNG,
2012b § 546).
Um segundo exemplo aponta a
natureza de alerta dos sonhos prospectivos. Certa vez um médico amigo de Jung,
fã do alpinismo, caçoou dele, questionando se podia ajudá-lo a analisar um
"sonho idiota":
Eu estava escalando uma montanha muito alta,
por um lado íngreme, coberto de neve. Vou subindo cada vez mais alto. O tempo
está maravilhoso. Quanto mais subo, mais me sinto bem. Tenho a sensação de que
seria bom se eu pudesse continuar subindo assim, eternamente. Chegando ao pico,
uma sensação de felicidade e arrebatamento me invade; esta sensação é tão
forte, que tenho a impressão de que poderia subir ainda mais e entrar no espaço
cósmico. E é o que faço. Subo no ar. Acordo em estado de êxtase (JUNG,
2012b § 323).
Como
sabia que nada faria o amigo abandonar o alpinismo, Jung pediu-lhe que ao menos
deixasse de escalar sozinho. O amigo riu do conselho. "Nunca mais o vi.
Dois meses depois, sofreu o primeiro acidente" (JUNG,
2012b, § 324). Estava desacompanhado, foi soterrado por
uma avalanche e salvo no último minuto por uma patrulha militar, que
casualmente se encontrava por perto. Três meses depois, o acidente foi fatal.
Acompanhado apenas de um amigo mais jovem, o médico alpinista estava já
descendo da montanha quando pisou em falso, caiu sobre a cabeça do amigo que o
esperava abaixo e ambos rolaram juntos para o precipício. "A cena foi
presenciada por um guia que se encontrava mais embaixo. Foi este o êxtase em
sua plenitude" (JUNG, 2012b, § 325).
O
terceiro exemplo vem de um sonho do próprio Jung. Foi descrito em artigo
escrito pela Profa. Dra. Lilian Wurzba, docente do Ijep, a partir de relatos na
introducão feita por Jung ao Livro Vermelho (JUNG, 2010), bem como em Memórias, Sonhos e
Reflexões (JUNG; JAFÉ, 1989). "Depois das visões que
tivera no final de 1913 e dos sonhos no início de 1914, sem qualquer sucesso em
interpretá-los, Jung chegou a pensar que estivesse com o `espírito
doente`" (WURZBA, 2018). "Como psiquiatra que era, pensou estar `a caminho
de ‘fazer uma esquizofrenia`, como revelou a Mircea Eliade em uma entrevista
para a revista Combat, em 1952":
Eu estava justamente nesta época preparando uma conferência
sobre esquizofrenia, para ser lida num congresso em Aberdeen, e não me cansava de
repetir para mim mesmo: "estarei falando de mim mesmo! Muito
provavelmente, enlouquecerei depois de ler a conferência". O congresso
teria lugar em julho de 1914 - exatamente no período em que, nos meus três
sonhos, via-me viajando pelos mares do sul. A 31 de julho, imediatamente após a
minha conferência, soube pelos jornais que eclodira a guerra. Finalmente,
entendi tudo. E quando desembarquei na Holanda, no dia seguinte, ninguém era
mais feliz do que eu. Agora tinha a certeza de que nenhuma esquizofrenia me
ameaçava. Compreendi que os meus sonhos e as minhas visões me chegavam do
subsolo do inconsciente coletivo. O que me restava agora fazer era aprofundar e
validar essa descoberta. E isso é o que estou tentando fazer há 40 anos
(McGuirre; Hull apud WURZBA, 2018, p. 213-214).
O
interessante neste sonho registrado na entrevista (MCGUIRRE; HULL, 1982,
p. 213-214)é que ele traz a tentativa de explanação que Jung da função
prospectiva dos sonhos ligada à noção de inconsciente pessoal e coletivo. Nos
dois primeiros casos, podemos deduzir que se tratavam de sonhos ligados à
esfera pessoal, que está mais próxima da consciência. Já o sonho de Jung
certamente estava mais ligado ao inconsciente coletivo, visto que provêm de uma
camada mais profunda. Daí a dificuldade para compreendê-los, visto que apenas o
material associativo do sonhador, baseado em relações pessoais ou experiências
de vida, são escassos para prognosticar um conflito como a Primeira Guerra
Mundial, que ceifaria vinte milhões de vidas.
Seja qual for a possibilidade
que pareça mais sensata, nunca é demais lembrar o alerta de Jung, de que
"toda interpretação é uma mera hipótese, apenas uma tentativa de ler um
texto desconhecido" (JUNG, 2012b § 322). Ainda assim, também de
acordo com Jung, convém lembrar que toda tentativa é válida. "Por isso é
raro que um indivíduo que tenha se submetido ao fatigoso trabalho de análise de
sonhos com a competente assistência de um especialista (...) não veja seu
horizonte se alargar e enriquecer" (JUNG, 2012a § 549).
Referências
JUNG, C. G. O livro vermelho: Liber Novus.
1. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
JUNG, C. G. Da essência dos
sonhos. In: A
natureza da psique. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a. p.
235-253.
JUNG, C. G. A aplicação prática
da análise dos sonhos. In: Ab-reação, análise dos sonhos e
transferência (OC 16/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012b.
p. § 294-352.
JUNG, C. G.; JAFÉ, A. Memórias, sonhos e reflexões.
11. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
MCGUIRRE, W.; HULL, R. F. C. C.G.Jung: entrevistas e encontros.
São Paulo: Cultrix, 1982.
Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP
- Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia
Junguiana, jornalista, Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo.
E-mail: analisejunguianasp@gmail.com
Como citar este artigo
MARTINEZ, Monica. Sonhos projetivos: uma
ponte para o futuro. Instituto
Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=425&ref=sonhos-projetivos-uma-ponte-para-o-futuro#conteudo>. Acesso em: 6 jun. 2019.
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