sexta-feira, 7 de junho de 2019

Sonhos projetivos: uma ponte para o futuro





Para o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), o objetivo do tratamento de neuroses seria o de estalecer a harmonia possível entre o consciente e o inconsciente.

O estudo dos sonhos e a consequente proposição de um método para emprego na prática terapêutica foi uma tarefa à qual Jung se dedicou ativamente ao longo da vida.

Não é uma prática simples, nem a ser feita de forma leviana. Em um texto publicado na revista Ciba em 1945 – portanto quando ele tinha já tinha 70 anos – Jung dizia:

A compreensão do sonho, de fato, é um trabalho tão difícil, que há muito tempo eu estabeleci como regra, quando alguém me conta um sonho e pede minha opinião, dizer, antes do mais, a mim mesmo: `Não tenho a mínima ideia do que este sonho quer significar. Após esta constatação, posso me entregar ao trabalho da análise propriamente dita do sonho (JUNG, 2012a, § 533).

Jung propunha quatro funções para os sonhos, dividindo-as nas seguintes categorias: compensadores, redutores ou retrospectivos, reativos e prospectivos (JUNG, 2012a, § 499).

1)    Sonhos compensadores: o psiquiatra suíço dizia que os sonhos "comportam-se como compensações da situação da consciência em determinado momento" (JUNG, 2012a, § 487). Pois isso, para analisá-los  corretamente, é preciso "possuir um conhecimento acurado da consciência neste preciso momento, porque o sonho encerra o seu complemento inconsciente, ou seja, o material constelado com o estado momentâneo da consciência" (JUNG, 2012a, § 477).
2)    Sonhos redutivos ou retrospectivos:  Jung entendia que certos sonhos tentam autorregular a psique de indivíduos "cuja atitude consciente e esforço de adaptação ultrapassam as capacidades individuais, ou seja, parecem melhores e mais valiosos do que são na realidade" (JUNG, 2012a, § 496). Ele tenderia "a desintegrar, a dissolver, depreciar, e mesmo destruir e demolir" (JUNG, 2012a, § 496). A função negativamente compensadora, também chamada de função redutora do inconsciente, teria um efeito salutar, pois afetaria positivamente apenas a atitude, não a personalidade do sonhador. Em outras palavras, "baixaria sua bola", desinflando o ego.
3)    Sonhos reativos: Jung alerta que esse tipo de sonho, que parece ser apenas a reprodução de uma experiência consciente carregada de afeto, demanda a investigação do "aspecto simbólico que escapou ao sujeito e que é o único fator que provoca a reprodução onírica desta experiência" (JUNG, 2012a, § 499). Ele os diferencia dos sonhos de vítimas de guerras, por exemplo, que  desencadeiam "muitos sonhos reativos puros nos quais o trauma é o fator mais ou menos determinante" (JUNG, 2012a, § 499). "A análise (...) pode resolver a questão porque, nesse caso, a reprodução da cena dramática se interrompe se a interpretação é correta, ao passo que a reprodução reativa não é afetada pela análise do sonho" (JUNG, 2012a, § 501).
4)    Sonhos prospetivos: segundo Jung, a função prospectiva sugere uma antecipação, oriunda do inconsciente, de atividades conscientes futuras. Não raro, constitui um esboço de solução de um conflito. "Seria injustificado qualificá-los como proféticos, pois, no fundo, não são mais proféticos do que um prognóstico médico ou metereológico", aponta Jung(JUNG, 2012a, § 493). Seriam uma combinação de possibilidades que podem ou não concordar, parcial ou integralmente, com o curso real que os acontecimentos tomarão. Como teriam o potencial de combinar percepções, pensamentos e sentimentos, bem como vestígios subliminares da memória que não se encontram mais na consciência, do ponto de vista de prognóstico "o sonho se encontra muitas vezes em situação mais favorável do que a consciência (JUNG, 2012a, § 493).

Apresentado este sistema analítico, vamos agora comentar três sonhos que focam na função prospectiva.

O primeiro deles, que usaremos aqui como exemplo, foi relatado pelo próprio psiquiatra no artigo de 1945 (JUNG, 2012b § 542):

Certa vez tratei um jovem que me contou, na anamnese, que estava noivo, e de uma maneira muito feliz, de uma jovem de "boa família". Nos sonhos, a personagem desta jovem assumia muitas vezes um aspecto pouco recomendável. Do exame do contexto deduziu-se que o inconsciente do paciente associava à figura da noiva toda espécie de histórias escandalosas, provenientes de outra fonte, o que lhe parecia absolutamente incompreensível e a mim naturalmente não menos também. A repetição constante destas combinações me levou, contudo, a concluir que existia no rapaz, apesar de sua resistência consciente, uma tendência inconsciente em fazer sua noiva aparecer  sob essa luz equívoca. Ele me disse que, se tal coisa fosse verdadeira, isto representaria para ele um autêntico desastre. Sua neurose se manifestara algum tempo depois da festa do noivado. Embora me parecessem inconcebíveis e sem sentido, as suspeitas a respeito da sua noiva me pareciam constituir um ponto de importância tão capital, que eu lhe aconselhei a fazer algumas investigações a respeito. As pesquisas mostraram que as suspeitas eram fundadas e o "choque" causado pela descoberta desagradável não só não abateu o paciente, mas o curou de sua neurose e também de sua noiva. (JUNG, 2012b § 542).

Para Jung, os sonhos podem apresentar três possibilidades. A primeira é a compensatória: "Se a atitude consciente a respeito de uma situação dada da vida é fortemente unilateral, o sonho adota um partido oposto" (JUNG, 2012b § 546), o que parece ter sido o caso da noiva de "boa família", como se dizia na época. A segunda possibilidade é a complementar, quando "a consciência guarda uma posição que se aproxima mais ou menos do centro, o sonho se contenta em exprimir variantes (JUNG, 2012b § 546). Já se a atitude consciente é adequada,"o sonho coincide com esta atitude e lhe sublinha assim as tendências, sem perder a autonomia que lhe é própria" (JUNG, 2012b § 546).

Um segundo exemplo aponta a natureza de alerta dos sonhos prospectivos. Certa vez um médico amigo de Jung, fã do alpinismo, caçoou dele, questionando se podia ajudá-lo a analisar um "sonho idiota":

Eu estava escalando uma montanha muito alta, por um lado íngreme, coberto de neve. Vou subindo cada vez mais alto. O tempo está maravilhoso. Quanto mais subo, mais me sinto bem. Tenho a sensação de que seria bom se eu pudesse continuar subindo assim, eternamente. Chegando ao pico, uma sensação de felicidade e arrebatamento me invade; esta sensação é tão forte, que tenho a impressão de que poderia subir ainda mais e entrar no espaço cósmico. E é o que faço. Subo no ar. Acordo em estado de êxtase (JUNG, 2012b § 323).

Como sabia que nada faria o amigo abandonar o alpinismo, Jung pediu-lhe que ao menos deixasse de escalar sozinho. O amigo riu do conselho. "Nunca mais o vi. Dois meses depois, sofreu o primeiro acidente" (JUNG, 2012b, § 324). Estava desacompanhado, foi soterrado por uma avalanche e salvo no último minuto por uma patrulha militar, que casualmente se encontrava por perto. Três meses depois, o acidente foi fatal. Acompanhado apenas de um amigo mais jovem, o médico alpinista estava já descendo da montanha quando pisou em falso, caiu sobre a cabeça do amigo que o esperava abaixo e ambos rolaram juntos para o precipício. "A cena foi presenciada por um guia que se encontrava mais embaixo. Foi este o êxtase em sua plenitude" (JUNG, 2012b, § 325).

O terceiro exemplo vem de um sonho do próprio Jung. Foi descrito em artigo escrito pela Profa. Dra. Lilian Wurzba, docente do Ijep, a partir de relatos na introducão feita por Jung ao Livro Vermelho (JUNG, 2010), bem como em Memórias, Sonhos e Reflexões (JUNG; JAFÉ, 1989). "Depois das visões que tivera no final de 1913 e dos sonhos no início de 1914, sem qualquer sucesso em interpretá-los, Jung chegou a pensar que estivesse com o `espírito doente`" (WURZBA, 2018). "Como psiquiatra que era, pensou estar `a caminho de ‘fazer uma esquizofrenia`, como revelou a Mircea Eliade em uma entrevista para a revista Combat, em 1952":

Eu estava justamente nesta época preparando uma conferência sobre esquizofrenia, para ser lida num congresso em Aberdeen, e não me cansava de repetir para mim mesmo: "estarei falando de mim mesmo! Muito provavelmente, enlouquecerei depois de ler a conferência". O congresso teria lugar em julho de 1914 - exatamente no período em que, nos meus três sonhos, via-me viajando pelos mares do sul. A 31 de julho, imediatamente após a minha conferência, soube pelos jornais que eclodira a guerra. Finalmente, entendi tudo. E quando desembarquei na Holanda, no dia seguinte, ninguém era mais feliz do que eu. Agora tinha a certeza de que nenhuma esquizofrenia me ameaçava. Compreendi que os meus sonhos e as minhas visões me chegavam do subsolo do inconsciente coletivo. O que me restava agora fazer era aprofundar e validar essa descoberta. E isso é o que estou tentando fazer há 40 anos (McGuirre; Hull apud WURZBA, 2018, p. 213-214).

O interessante neste sonho registrado na entrevista (MCGUIRRE; HULL, 1982, p. 213-214)é que ele traz a tentativa de explanação que Jung da função prospectiva dos sonhos ligada à noção de inconsciente pessoal e coletivo. Nos dois primeiros casos, podemos deduzir que se tratavam de sonhos ligados à esfera pessoal, que está mais próxima da consciência. Já o sonho de Jung certamente estava mais ligado ao inconsciente coletivo, visto que provêm de uma camada mais profunda. Daí a dificuldade para compreendê-los, visto que apenas o material associativo do sonhador, baseado em relações pessoais ou experiências de vida, são escassos para prognosticar um conflito como a Primeira Guerra Mundial, que ceifaria vinte milhões de vidas.

Seja qual for a possibilidade que pareça mais sensata, nunca é demais lembrar o alerta de Jung, de que "toda interpretação é uma mera hipótese, apenas uma tentativa de ler um texto desconhecido" (JUNG, 2012b § 322). Ainda assim, também de acordo com Jung, convém lembrar que toda tentativa é válida. "Por isso é raro que um indivíduo que tenha se submetido ao fatigoso trabalho de análise de sonhos com a competente assistência de um especialista (...) não veja seu horizonte se alargar e enriquecer" (JUNG, 2012a § 549).

Referências
JUNG, C. G. O livro vermelho: Liber Novus. 1. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
JUNG, C. G. Da essência dos sonhos. In: A natureza da psique. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a. p. 235-253.
JUNG, C. G. A aplicação prática da análise dos sonhos. In: Ab-reação, análise dos sonhos e transferência (OC 16/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012b. p. § 294-352.
JUNG, C. G.; JAFÉ, A. Memórias, sonhos e reflexões. 11. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
MCGUIRRE, W.; HULL, R. F. C. C.G.Jung: entrevistas e encontros. São Paulo: Cultrix, 1982.
Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista, Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com

Como citar este artigo
MARTINEZ, Monica. Sonhos projetivos: uma ponte para o futuro. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=425&ref=sonhos-projetivos-uma-ponte-para-o-futuro#conteudo>. Acesso em: 6 jun. 2019.

sexta-feira, 29 de março de 2019

O filho do pastor: narrativas biográficas, relação pai-filho e o processo de individuação

A mãe e o pai de C. G. Jung
Desde meu doutorado, tenho pesquisado as histórias de vida como método. Entender a proposta do psiquiatra Carl Gustav Jung (1875-1961) neste contexto foi o principal motivo que me levou a me aprofundar em Psicologia Junguiana, na qual concluí a especialização em 2014 no Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep).

Na época da conclusão do curso, ganhei de natal o famoso livro vermelho de Jung (JUNG, 2010). Confesso que na época o folheei, encantada, mas não me senti apta a digeri-lo comme il faut.  Parecia-me que, de Jung, eu ainda não havia compreendido o revealing remark, a observação reveladora como o maior de todos os narradores da The New Yorker, Joseph Mitchell (1908-1996) postulava(MITCHELL, 2003). Não raro, Mitchell levava até três anos para escrever perfis de nova iorquinos para esta revista estadunidense que, desde 1925, se não lançou o perfil (profile) como gênero, reúne até hoje a nata deste gênero jornalístico literário (REMNICK, 2000, tradução nossa). Como disse o cineasta João Moreira Salles, "a ´observação reveladora´é aquela que surge absolutamente singular, dita provavelmente pela primeira vez, para surpresa e alegria do próprio falante. É uma palavra nova e inviolada, trazida à tona pela feliz empatia entre quem fala e quem escuta" (SALLES, 2003, 152).

O que estaria no âmago da vida e obra de Jung? Aliás, ele dizia que não tinha criado uma teoria ou sistema. "Freud tinha uma ´teoria; eu não tenho ´teoria´, mas descrevo fatos. Eu não teorizo sobre o surgimento das neuroses, mas descrevo o que existe nas neuroses; também não tenho uma teoria sobre os sonhos, apenas indico o método que uso e os possíveis resultados (JUNG, 2018, p. 17-18). Assim, em 1º. de julho de 2016, iniciei os atendimentos clínicos, a princípio recebendo em meu consultório os pacientes encaminhados pela Clínica Ijep (https://www.ijep.com.br/index.php?sec=pags&id=232) e, desde então, recebendo cada vez mais analisandas e analisandos.

Mesmo depois de tanto estudar a prática junguiana, e já apoiada pela experiência de meu consultório, eu ainda tinha a inquietação de compreender o que havia movido Jung a trilhar seu caminho. Em 2018, adquiri a trilogia das cartas de C. G. Jung. Comecei a ler o volume 1 meio sem interesse, mas na metade já estava encantada com a escrita informal e erudita de Jung, como ele conseguia abordar temas de grande complexidade de um jeito absolutamente simples, direto, criativo e fluente. Como os diários e as entrevistas em formato pingue-pongue, as cartas nos dão a ilusão de estar ouvindo diretamente o outro.
Na carta à pastora Dorothee Hoch, datada de 28 de maio de 1952, veio o insight. "A suposição de que sou vítima de um complexo pessoal pode ser levantada, quando se sabe que sou filho de pastor (...) É verdade que eu não gostava de teologia, porque ela colocava problemas para meu pai que ele não conseguia resolver e que eu considerava injustificados" (JUNG, 2018, p. 240). Em sua resposta, Jung refutou essa hipótese: "Mas eu tive um bom relacionamento pessoal com meu pai - portanto nenhum complexo do tipo comum" (JUNG, 2018, p. 240). Teria ele, contudo, por meio de seus experimentos e obra, vivido a vida não vivida de seu pai?

Se há algo que podemos dizer com segurança é que a perspectiva junguiana é ancorada no universo cristão. "A ética depende da decisão suprema de uma consciência cristã, e a própria consciência não depende da pessoa apenas, mas igualmente da contrapartida da pessoa, isto é, Deus" (JUNG, 2018, p. 24). Não por acaso, o fenômeno religioso e a representação das imagens de Deus ocupam um lugar central em suas reflexões e, por extensão, nas suas cartas, em particular a partir do lançamento de seu livro Aion, em 1951(JUNG, 2012a), e, sobretudo, Resposta a Jó, em 1952 (JUNG, 2012b). O interesse específico de Jung estava nas representações primordiais coletivas que estão na base das diversas formas de religião, que ele chama de imagens arquetípicas. 

Haveria na psique humana uma potencialidade que impulsiona o ser humano a procurar e a se relacionar com o transcendente, seja o nome que se dê para ele/ela, em sua miríade de imagens antropomórficas cujas representações vão mudando de acordo com o tempo, o espaço e a cultura. "O termo ´Deus´ (...) expressa uma imagem ou conceito verbal que sofreu muitas mudanças ao longo de sua história. Em tal caso não temos possibilidade alguma de mostrar, com a mínima parcela de certeza que seja - a não ser a da fé - se tais mudanças se referem apenas às imagens e aos conceitos, ou se atingem o próprio inefável" (JUNG, 2012, § 555). O foco de Jung, portanto, nunca foi de natureza teológica, mas psicológica. Em outras palavras, as máscaras da eternidade, símbolos que nunca serão conhecidos totalmente, como diz o mitólogo estadunidense Joseph Campbell (1904-1987), porque velam o indizível (CAMPBELL, 1992, 2008a, 2008b, 2010). 

Assim, teria a pastora Dorothee Hoch, em 1952, apontado a motivação que teria levado Jung a desenvolver sua obra, que culminaria em Resposta à Jó? Em seu livro de memórias, editado pela analista suíça Aniela Jafé (JUNG; JAFÉ, 1989), Jung conta que em 1887, aos 12 anos, teria tido uma experiência numinosa e começado a sentir dúvidas em tudo o que seu pai dizia. "Suas palavras eram insípidas e vazias, tal como uma história contada por alguém que nela não crê, ou que só a conhece por ouvir dizer. Queria ajudá-lo, mas não sabia como. Uma espécie de pudor impedia que lhe contasse minha própria experiência, ou me imiscuísse em suas preocupações pessoais" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50).

Mais tarde, ao redor dos 18 anos, Jung narra que teria tentado por várias vezes conversar com seu pai sobre o assunto, "sempre com a secreta esperança de fazê-lo sentir algo da graça maravilhosamente eficaz e ajudá-lo em seus conflitos de consciência" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50). Ele continua: "Infelizmente nossas discussões jamais chegavam a uma solução satisfatória. Elas o irritavam e entristeciam. ‘Pois bem - costumava dizer - você só quer pensar. Mas não é isso que importa; o importante é crer. ‘E eu pensava: não, é preciso experimentar e saber; e acrescentava: ´Dê-me essa fé. Ele se erguia e ao se afastar encolhia os ombros, resignado" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50).
Teria Jung, por meio de sua prática, tentado dar uma resposta à inquietação não integrada pelo seu pai, um pastor protestante que paradoxalmente não tinha fé para compartilhar, pregando fazer o que ele mesmo não fazia?

A resposta ao pai talvez esteja expressa na memorável entrevista que Jung concedeu em sua casa em Zurique ao jornalista britânico John Freeman (1915-2014), em 1959. Freeman conduzia uma série chamada Face to Face para a BBC 4. Um ano e meio antes de falecer, ao ser questionado por Freeman se acreditava em Deus, Jung declarou "I don´t need to believe. I know" (FREEMAN, 1959). Em tradução livre: "Eu não preciso acreditar. Eu sei." Transcender o ego e se render ao self, essa contrapartida do indivíduo que é uma das premissas da análise junguiana, é a prova suprema, por assim dizer, do processo de individuação. Ou como Jung disse, com outras palavras, no terceiro volume das cartas em resposta a um primeiro anista da Northwestern University sobre a "vontade de Deus": "É o fator que decide em última instância quando tudo está dito e feito. É essencialmente algo que não podemos conhecer de antemão. Só o conhecemos após o fato". (JUNG, 2018, p. 25). A própria noção de self nasce, em alguma medida, dessa representação divina, a Imago Dei: uma "esfera infinita, cujo centro está em toda parte, e a circunferência em parte nenhuma" (JUNG, 2018b, p. 16).

Jung diz na primeira linha de suas memórias, "Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 19). Se o que o movia era viver a vida não vivida do pai, justificando por meio da experiência e do saber que não era preciso fé para compreender o mistério supremo da vida, parece por esta afirmação que ele o conseguiu, valendo-se da gnose e do empirismo científico, permitiu que o numinoso, que é simultaneamente tremendo, fascinante e misterioso, estivesse presente constantemente no final da sua existência.

Para mim, a questão não é saber se esse insight que me tomou é verdadeiro do ponto de vista factual ou não. Como Jung também disse na abertura de suas memórias, "essa é aminha aventura, a minha verdade" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 19). Do ponto de vista simbólico, essa hipótese fez sentido e me ajudou a entender melhor o cerne da busca de minha representação de Jung. Agora, finalmente, posso me aventurar no sagrado livro vermelho. Minha leitura programada para 2019 será o Liber Novus.

Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista e escritora. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com

Referências

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Blade Runner, the anima and the process of masculine individuation


Harrison Ford (Blade Runner, 1982) and Ryan Gosling (2049, 2017):
replicants in troubled love

Much has changed in the nearly four decades that separate the classic Hollywood movie Blade Runner (1982) from 2049 (2017).

When U.S. director Ridley Scott’s Blade Runner was released, it was a failure at the box office, probably due to its complex plot and futuristic noir aesthetics.

However, like a good wine, the film over time came to be considered one of the best ever made – to the point where its director even said he felt it was his best work.

The plot of the 1982 film: at the dawn of the 21st century in Los Angeles, the Tyrell Corporation has developed replicants who, being as (or more) intelligent and as strong as humans, are sent to colonize other planets. A riot leads them to be hunted on Earth by an elite squad, the Blade Runners, who give the film its name. By 2019, five replicants remain at large, and Officer Deckard (Harrison Ford) is ordered to hunt them down one by one. A love interest develops between the cop and the latest replica on his list, Rachael (Sean Young).

Cut to 2017, in the same Los Angeles as the 2049 movie. A new species of replicants is developed, apparently more obedient. Apparently… The Blade Runner now is K (Ryan Gosling), who comes across a secret: Rachael, despite being a replicant, had a child – the old fashioned myth of ​​a divine child behind the possible revolution against humans.

What both films have in common is that they address fundamental issues that guide human beings, with an emphasis on ethics and the search for the meaning of life.

Certain things, however, have not changed between the two films. One is the importance of the anima in the male’s life and, by extension, loving relationships.

And what is the anima in the context of Jungian analysis? In fact, the anima and the animus archetypes are one of the main contributions of the Swiss psychiatrist Carl Gustav Jung (1865-1961) to theories of human development.

Jungian psychotherapist Robert Hopcke states that “... Jung noted that behind the male conscious personality there seemed to be an unconscious feminine side with its own particular character and its own ways of acting” (HOPCKE, 2012, p. 104).

For Jung, this caring, emotional and spiritual side of a man could be perceived in his dreams, fantasies and projections, where he assumed the symbolic form of a woman.

Therefore, the anima would be the bridge between man and his creativity, his love, his soul – in short, his pleasure for life.

In the 1982 Blade Runner movie, Deckard surrenders to fantasy and runs off with Rachael, as if the prince had happily married the mermaid transformed into a human being by a witch in the tale The Little Mermaid by Danish writer Hans Christian Andersen (1805-1875).

2049, however, seems to be much more complex on this issue. Lieutenant Joshi (performed by Robin Wright), the boss of K, sends him to find and eliminate the child.

She says he is a man without a soul anyway. And she is right to a certain extent. K. has on his side Joi (interpreted by the Cuban model Ana de Armas). It is a virtual companion, a sophisticated Siri who interacts with him in real-time and transforms herself incredibly quickly to meet the wishes of her man.

In the blink of an eye, Joi adopts the persona of the perfect 1950s housewife, anchored in a pre-feminist world, to diligently prepare his dinner. Soon she becomes the contemporary, postmodern companion, who has a keen interest in hearing his answer to her question “What a difficult day, right?”

Brazilian psychotherapist Waldemar Magaldi always quotes Jung when he was asked how to choose the ideal partner: “Choose someone with whom you will still be talking 30 years from now”.

Despite being a replicant and a virtual woman, the couple interact beautifully in the art of conversation. Joi recalls that K needs a name, that is, to be removed from the indistinct ocean of the unconscious and become individualized; so she names him Joe. Symbolically reborn as Joe, K. recognizes the qualities of Joi, and his struggle to make their relationship work makes him, in a sense, more himself.

However, as we all know, Joi is a just a projection. Adjusting his inner image of the anima to that of the real woman out there is one of the greatest, if not the greatest, male challenge concerning relationships.

In The Cat, a tale of feminine redemption (FRANZ, 2011), Von Franz reminds us that many women get caught in this projection web that men throw at them – meaning that it is not a real relationship, but a fantasy whose spell breaks with time.

In 2049, the issue is settled with the symbolic death of Joi. The virtual feminine side sacrifices herself (in the sense of making it sacred) so that the masculine side can become himself and ready for a real relation.

In what may be the worst scene in the movie, though, K., now as Joe, fails to evolve, so to speak. On the contrary, he has a sad death, emotionally carried out by the same song that was a highlight of the 1982 film: the death of the replicant Roy (played by Hutger Hauer).

In 1982, the death of the replicant symbolized life’s ephemerality (https://www.youtube.com/watch?v=chIP3AvqLDo ). “I’ve seen things you people wouldn’t believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die.”

In 2017, however, K´s death only prevents him from going out there and living a real love, with all the delights and the scars that that entails. Like Antoine de Saint-Exupéry´s Little Prince, who doesn´t want to become a grown up and lets himself be killed by a snake. Yes, nobody said it was going to be easy…

Acknowledgements
I would like to thank Bruna Camargo for the translation and John S. Bak for the English text revision

References
FRANZ, M.-L. VONZ. O gato: um conto da redenção feminina. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011.
HOPCKE, R. H. Guia para a obra completa de C. G. Jung. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.