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Cena do filme "Um método perigoso", onde Jung trata a paciente Sabina Spielrein
Por Monica Martinez
Haveria resistência das chamadas ciências duras em aceitar abordagens psicológicas, incluindo a de C. G. Jung, como científicas. Na verdade, não é somente o método proposto pelo psiquiatra suíço que sofreu/sofre essa reação da comunidade científica. Basta lembrarmos que Sigmund Freud também enfrentou essa oposição antes que suas ideias encontrassem respaldo no mundo acadêmico.
Contudo, o que talvez poucos saibam é que, desde o início, Jung encontrou reconhecimento acadêmico devido justamente à pesquisa que realizava. No início do século XX, ele desenvolvia com o psiquiatra suíço Franz Riklin (1878-1938) experimentos com o teste de associação no hospital psiquiátrico Burghölzli, em Zurique, Suíça (KAST, 2019, p. 9). Os estudos eram inspirados nas pesquisas do criador da associação livre, Sir Francis Galton (1822-1911).
Em seu livro Jung, Vida e Obra, a psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1905-1999) registra o momento histórico em que o hospital Burghölzli fervilhava de vida e entusiasmo com as descobertas que levariam ao desenvolvimento da psiquiatria interpretativa (em oposição à descritiva). “(...) todos queriam por à prova as ideias recém-lançadas por Freud, buscando verificar se, de fato, era possível descobrir elos causais para fenômenos tão díspares como lapsos, sonhos, sintomas neuróticos e delírios dos grandes loucos” (SILVEIRA, 2007, p. 29).
Um dos casos mais citados deste período era de uma paciente de Jung de 32 anos, casada, mãe de dois filhos:
Depois da morte de sua filha mais velha, de 4 anos, ela adoeceu gravemente. A experiência de associações revelou, pelas reações a certas palavras-indutoras, que algo de muito sério, de muito carregado de emoção, que o ego não tinha forças para incorporar, estava por trás daquela condição patológica. Jung vislumbrou a tragédia oculta e isso abriu caminho para que a confissão fosse feita: quando solteira ela havia amado um rapaz rico, de situação social superior à sua e que parecia não lhe dar nenhuma atenção. Casou-se com outro e teve dois filhos. Recentemente soubera que aquele rapaz também a havia amado e sofrera quando ela se casou. Isso a perturbou, absorveu seus pensamentos. Aconteceu então que, dando banho na filha, a menina chupou água da esponja embebida. O menino mais novo aproximou-se e também bebeu água da banheira onde se banhava a irmã. A água não era potável. A menina morreu de febre tifoide. Depois que Jung ajudou-a a tomar consciência de seu desejo inconsciente e a libertar-se das crianças para ir ao encontro do antigo amado, a doente curou-se e dentro de pouco tempo deixou o hospital (SILVEIRA, 2007, p. 28).
Ainda hoje o teste de associação é bastante simples: diz-se uma série de palavras ao qual o participante reage com o primeiro termo que lhe vier à mente, e depois é feita a repetição da série. Por exemplo: o condutor do experimento diz manga e a pessoa pensa em, digamos, sorvete. Sabe-se que, quanto mais cansados os participantes estiverem, menos o nível de instrução vai impactar neste retorno.
O que chamou a atenção de Jung e Riklin, contudo, foi a variação no tempo de reação, isto é, associações que levavam um longo tempo de reação, bem como outras que não eram lembradas no teste de reprodução – a princípio interpretadas como erros. Influenciados pela teoria do recalque freudiana, eles ficaram curiosos com o que podia estar por trás desta demora na resposta.
A este lapso de tempo eles chamaram de “complexo de tonalidade afetiva” e, mais tarde, simplesmente de complexo. “(...) descobrimos que isso acontecia quando uma palavra-estímulo se referia a um assunto pessoal que (...) tinha certo caráter penoso” (JUNG, 2012, § 1350). E completa: “Muitas vezes a relação não era clara à primeira vista, mas tinha um caráter mais ‘simbólico’, eram ‘alusões’” (JUNG, 2012, § 1350).
Este termo ou conjunto de ideias, segundo ele, estavam unidos a uma carga emocional. “Com experiência e prática é possível identificar com facilidade as palavras-estímulo que vêm acompanhadas de distúrbios especiais, combinar seu significado e, então, deduzir os assuntos íntimos da pessoa experimental” (JUNG, 2012, § 1350).
Jung percebeu o potencial de estudar a relação entre complexos e neuroses, que podem levar ao adoecimento. Segundo ele, o complexo intervém na intenção de a pessoa responder rápida e corretamente ao teste, o que demonstra que “o complexo se comporta de forma autônoma em relação às intenções do indivíduo” (JUNG, 2012, § 1352).
Para o psiquiatra suíço, a neurose levaria eventualmente a uma adaptação ao meio ambiente. Já nos casos mais severos, psicóticos, os complexos se fixariam de tal forma que poderiam levar a uma paralisação da personalidade como um todo (JUNG, 2012, § 1354).
Mesmo nestes casos, contudo, ele entendia que muitos pacientes continuariam com intensa vida interior, rica em fantasias, por meio da qual os complexos poderiam ser trabalhados. “Ali está de certa forma a fábrica onde são produzidas as delusões, alucinações etc. a partir de conexões bastante engenhosas” (JUNG, 2012, § 1354).
Ao reconhecer o valor terapêutico da abordagem em seu trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, Nise da Silveira (1905-1999) se tornou uma voz importante na psiquiatria brasileira que se ergueu contra as técnicas agressivas usadas nos pacientes de então, como o eletrochoque e a lobotomia (SILVEIRA, 2015).
Com o tempo, Jung ganhou tal experiência com o teste de associação que passou a não precisar mais dele para perceber hesitações ou perturbações na fala que sugerissem um complexo.
Por isso, estes testes não são mais utilizados no dia a dia pelos analistas da escola junguiana. Que, contudo, continuam de olhos bem abertos às evidências de possíveis complexos sinalizados por meio dos lapsos, gafes, perturbações da memória e sonhos, uma vez que estes podem revelar sintomas neuróticos. O que significa dizer que na base do método junguiano há, sim, até hoje, uma abordagem empírica e, portanto, científica.
Contudo, a ciência de Jung vai além da dimensão redutiva causal, pois inclui as potencialidades prospectivas sintéticas. Isso deixa a academia tradicional, baseada em evidências, mais refratária à obra junguiana. Afinal, quando vamos na direção da busca de sentido e significado para os fenômenos, inevitavelmente, iremos nos deparar com os mistérios. E estes são inexplicáveis, indefiníveis e plurais como os símbolos.
Referências
JUNG, C. G. Estudos experimentais. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
KAST, V. Jung e a Psicologia Profunda. São Paulo: Cultrix, 2019.
SILVEIRA, N. DA. Jung: vida e obra. 21. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
SILVEIRA, N. DA. Imagens do inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo, e na Granja Viana, em Cotia. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com.
Como citar este artigo
MARTINEZ, Monica. A ciência e a psicologia junguiana. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/artigos/show/a-ciencia-e-a-psicologia-junguiana>. Acesso em: 12 mar 2020.
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Doutora em Ciências da Comunicação pela USP, especialista em Psicologia Junguiana pelo Ijep com aperfeiçoamento pelo Instituto C. G. Jung.
segunda-feira, 23 de março de 2020
A ciência e a psicologia junguiana
quinta-feira, 8 de agosto de 2019
Sonhos: uma ponte para o inconsciente
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Sonhos: uma porta de entrada para o inconsciente |
Como é sabido, a física moderna utiliza a equação E=mc2 como parte da Teoria ou Princípio da Relatividade, desenvolvida pelo físico alemão Albert Einstein (1879-1955). Na minha prática como analista junguiana, eu me norteio pela equação Ψ=3SC. De um lado, empregando o símbolo Ψ (lê-se: "psi"), letra do alfabeto grego que simboliza a área da psicologia. Do outro, os pilares dos métodos da psicologia junguiana: a compreensão dos sintomas, sincronicidades e dos sonhos, bem como o emprego das terapias criativas, na tentativa de, quando necessário, reorganizar a contraparte não física do ser humano que chamamos de psique.
Este artigo faz uma abordagem introdutória dos sonhos, que o psicoterapeuta junguiano Robert H. Hopcke denomina de "pedra fundamental" da técnica analítica junguiana(HOPCKE, 2012, p. 35). E porque é fundamental? Em seu texto mais recomendado sobre o assunto (JUNG, 2012), Jung deixa claro que os sonhos têm um significado prático fundamental porque são uma expressão direta do inconsciente, sendo um canal para a compreensão das etiologias ( determinação das causas e origens) das neuroses. Criado pelo médico escocês William Cullen (1710-1790) em 1787, o termo neurose indica transtornos que, embora não severos, se instalam como um aviso de que algo não vai bem, obviamente causando tensão e interferindo em alguma medida na capacidade do indivíduo se ajustar ao seu meio.
O objetivo da análise dos sonhos em terapia é "a descoberta e a conscientização de conteúdos até então inconscientes" (JUNG, 2012, § 294). A abordagem freudiana entende os sonhos como fachadas, que dissimulam os conteúdos oníricos. Já a junguiana os entende como uma linguagem simbólica, como quando nos deparamos frente a um texto desconhecido. Assim, para Jung, os sonhos são o que são.
Para decifrá-los, por assim dizer, Jung propõe um método simples e eficaz. Enquanto um psicanalista usa seu conhecimento para interpretar o sonho trazido pelo paciente, o analista junguiano trabalha a partir do contexto que cerca a narrativa onírica na perspectiva do analisando. "É só a partir do conhecimento da situação consciente que se pode descobrir que sinal dar aos conteúdos inconscientes" (JUNG, 2012, § 333).
O psiquiatra suíço lembra que muitas vezes "os sonhos iniciais são de uma clareza e transparência espantosas" (JUNG, 2012, § 313), no que concordo com ele. Certa vez um paciente me trouxe na primeira consulta um sonho no qual sua privada transbordava de material fecal, e a água que impulsionava o conteúdo para fora era clara e cristalina. Ao cair no chão, as fezes se transformavam em tartarugas, cujo significado em várias culturas pode ser ligado ao masculino e feminino, ao humano e ao cósmico, como suporte do mundo e garantia de estabilidade (CHEVALIER, 1988).
Por mais promissor que um sonho desta natureza seja como parte do diagnóstico, funcionando como um prognóstico e norteando o processo analítico, o que importa na análise junguiana dos sonhos num primeiro momento não é o que o analista sabe sobre o símbolo. Como uma parteira, ele deve deixar aflorar o que o analisando sabe. O que importa, portanto, é a comprensão do paciente desse conteúdo que ainda não é consciente.
Para isso, Jung recomenda foco no contexto do sonho, sem se dispersar muito nas associações livres. "As associações livres nos fazem descobrir os complexos, mas, raramente, o sentido de um sonho", adverte Jung (JUNG, 2012, § 320). "Para compreender o sentido de um sonho tenho que me ater tão fielmente quanto possível à imagem onírica", explica (JUNG, 2012, § 320). Voltemos à tartaruga. Na cabeça do analista rondam algumas perguntas possíveis: qual é o contexto dessa tartaruga para aquele analisando específico? O que havia ocorrido nos dias precedentes? Há algo no seu histórico ligado à esta imagem? Com qual finalidade o insconsciente teria empregado aquela imagem? Para que ela foi usada? Ajuda também ter em mente a regra básica que remete à teoria das compensações do sistema autorregulador da psique: se o que falta de um lado cria um excesso do outro, que atitude consciente estaria sendo compensada pelo sonho? (JUNG, 2012, § 330). Se o analisando verbalizar espontaneamente que a tartaruga para ele representa as forças ctônicas de estabilidade, a pergunta seria: o que o estaria desestabilizando, deixando sem chão naquele momento? Neste caso ajuda sempre remeter à queixa que o trouxe até ali para não se perder na seara de problemas que podem emergir concomitantemente. É por isso que em análise junguiana não estamos propondo interpretações, mas ampliações de sonhos.
Não raro, a clareza dos sonhos iniciais se perde no processo. Neste momento o analisando pode apresentar uma pressa neurótica e o desejo de progredir mais e rápido. Na minha experiência clínica, o insconsciente costuma enviar sonhos de alerta, como elevadores que sobem velozmente em prédios antigos sem segurança, locais muito altos onde o indivíduo se sente isolado, desprotegido, e outras imagens que sugerem que é preciso reduzir o ritmo. Em geral, o sonhador não percebe, por si só, de maneira consciente, essa necessidade.
O fato é que nesses momentos a tentação pode ser grande, por parte do analista, de entrar com sua erudição e "seu" conteúdo e "resolver o problema" para o analisando. O que está longe de ser recomendado, uma vez que o próprio inconsciente está emitindo sinais claros de que há uma situação de conflito ainda não resolvida, que pede mais tempo para ser transcendida. "Em outras palavras, é melhor renunciar a tudo o que se sabe melhor, e de antemão, para pesquisar o que as coisas significam para o paciente" (JUNG, 2012, § 342).
Na assimilação gradual dos conteúdos oníricos,"é de extrema importância não ferir e muito menos destruir os valores verdadeiros da personalidade consciente" (JUNG, 2012, § 338). O motivo é simples: o processo de análise junguiana se faz por meio do ego do analisando. Se o desestruturarmos, "não haveria mais quem poderia assimilar" (JUNG, 2012, § 338). E o processo seria no mínimo ineficaz. Da mesma forma, é importante o analista considerar as convicções filosóficas, religiosas e morais conscientes do analisando, para trabalhar em parceria com elas, e não impor seu sistema de crença e valores.
Ir contra a maré, por assim dizer, pode por em risco todo o processo analítico. "Falha também por antecipar o desenvolvimento do paciente, o que o paralisa" (JUNG, 2012, § 314). Nesse momento, é preciso ter paciência de ambos lados, como numa gestação que ainda não chegou a termo. Até porque Jung adverte que "existem sonhos que simplesmente não são compreendidos pelo médico, nem pelo paciente" (JUNG, 2012, § 318). Há, claro, limites ao método de ampliação, e este é um deles.
Por outro lado, para que o método possa ser empregado com o máximo de chances de ser bem-sucedido, é vital que os analisandos mantenham um diário, registrando de forma clara seus sonhos logo ao acordarem, pois se trata de material volátil que segundos depois do despertar pode estar perdido. Um cadernino na mesa de cabeceira ainda é a melhor forma para fazer anotações, se bem que o onipresente smartphone está se tornando um equipamento indispensável de registro para muitos analisandos. De toda forma, é importante não cair na tentação e fazer o registro por meio da gravação de um áudio. Isso porque a escritura ajuda o conteúdo a se fixar no ego, estimulando o diálogo entre o inconsciente e o consciente.
O analista junguiano Daniel Gomes dá uma dica interessante: "quando se lembrar de um sonho, encare-o com a curiosidade de uma criança, mas com grande respeito, pois estes sonhos podem conter o mapa com os caminhos de sua realização" (GOMES, 2016).
Para a sessão, é importante o analisando levar este registro e, se possível, juntamente com o material referente ao seu contexto. Jung salienta que faz parte do método encorajar os analisandos a trabalhar ativamente na elaboração de seus conteúdos oníricos, aprendendo "a lidar corretamente com seu inconsciente, mesmo sem o médico" (JUNG, 2012, § 322).
O resultado de quando o processo está bem encaminhado é visível, pois no momento em que o analisando passa a assimilar seus conteúdos inconscientes os níveis de tensão e ansiedade vão sendo gradualmente diminuídos, uma vez que o conteúdo reprimido ou que era visto como perigoso passa a ser integrado.
Finalmente, uma andorinha sozinha não faz verão. Jung sugere que a ampliação "só adquire uma relativa segurança numa série de sonhos, em que os sonhos posteriores vão corrigindo as incorreções cometidas nas interpretações anteriores" (JUNG, 2012, § 322). Sim, o percurso pode sofrer desvios - afinal analisando e analista são humanos -, mas o curso correto é possível de ser retomado se o foco continuar nos conteúdos trazidos pelos sonhos. Mas os sonhos seriados já são um tema para um próximo artigo.
Referências
CHEVALIER, J. G. A. Dicionário dos símbolos. 24. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1988.
GOMES, Daniel. Os sonhos e seu papel na historia da humanidade. 5 jul 2016. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.facebook.com/institutojunguiano/posts/os-sonhos-e-seu-papel-na-historia-da-humanidadepara-algumas-pessoas-sonhar-n%C3%A3o-p/1174413959281650/>. Acesso em: 30 dez. 2018.
HOPCKE, R. H. Guia para a obra completa de C. G. Jung. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
JUNG, C. G. A aplicação prática da análise dos sonhos. In: Ab-reação, análise dos sonhos e transferência (OC 16/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. p. § 294-352.
Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista, Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo, e na Granja Viana (Cotia, SP). E-mail: analisejunguianasp@gmail.com.
Como citar este artigo
MARTINEZ, Monica. Sonhos: uma ponte para o inconsciente. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=427&ref=sonhos-uma-ponte--para-o-inconsciente#conteudo>. Acesso em: 8 ago. 2019.
sexta-feira, 7 de junho de 2019
Sonhos projetivos: uma ponte para o futuro
Para
o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), o objetivo do tratamento de
neuroses seria o de estalecer a harmonia possível entre o consciente e o
inconsciente.
O estudo dos sonhos e a
consequente proposição de um método para emprego na prática terapêutica foi uma
tarefa à qual Jung se dedicou ativamente ao longo da vida.
Não é uma prática simples, nem
a ser feita de forma leviana. Em um texto publicado na revista Ciba em
1945 – portanto quando ele tinha já tinha 70 anos – Jung dizia:
A compreensão do sonho, de
fato, é um trabalho tão difícil, que há muito tempo eu estabeleci como regra,
quando alguém me conta um sonho e pede minha opinião, dizer, antes do mais, a mim
mesmo: `Não tenho a mínima ideia do que este sonho quer significar. Após esta
constatação, posso me entregar ao trabalho da análise propriamente dita do
sonho (JUNG, 2012a, § 533).
Jung propunha quatro funções
para os sonhos, dividindo-as nas seguintes categorias: compensadores, redutores
ou retrospectivos, reativos e prospectivos (JUNG, 2012a, § 499).
1)
Sonhos compensadores: o psiquiatra suíço dizia que os sonhos "comportam-se como
compensações da situação da consciência em determinado momento" (JUNG,
2012a, § 487). Pois isso, para analisá-los corretamente, é preciso
"possuir um conhecimento acurado da consciência neste preciso momento,
porque o sonho encerra o seu complemento inconsciente, ou seja, o material
constelado com o estado momentâneo da consciência" (JUNG, 2012a, §
477).
2)
Sonhos redutivos ou retrospectivos: Jung entendia que
certos sonhos tentam autorregular a psique de indivíduos "cuja atitude
consciente e esforço de adaptação ultrapassam as capacidades individuais, ou
seja, parecem melhores e mais valiosos do que são na
realidade" (JUNG, 2012a, § 496). Ele tenderia "a desintegrar, a
dissolver, depreciar, e mesmo destruir e demolir" (JUNG, 2012a, §
496). A função negativamente compensadora, também chamada de função redutora do
inconsciente, teria um efeito salutar, pois afetaria positivamente apenas a
atitude, não a personalidade do sonhador. Em outras palavras, "baixaria
sua bola", desinflando o ego.
3)
Sonhos reativos: Jung alerta que esse tipo de sonho, que parece ser apenas a
reprodução de uma experiência consciente carregada de afeto, demanda a
investigação do "aspecto simbólico que escapou ao sujeito e que é o único
fator que provoca a reprodução onírica desta experiência" (JUNG,
2012a, § 499). Ele os diferencia dos sonhos de vítimas de guerras, por exemplo,
que desencadeiam "muitos sonhos reativos puros nos quais o trauma é
o fator mais ou menos determinante" (JUNG, 2012a, § 499). "A
análise (...) pode resolver a questão porque, nesse caso, a reprodução da cena
dramática se interrompe se a interpretação é correta, ao passo que a reprodução
reativa não é afetada pela análise do sonho" (JUNG, 2012a, § 501).
4)
Sonhos prospetivos: segundo Jung, a função prospectiva sugere uma
antecipação, oriunda do inconsciente, de atividades conscientes futuras. Não
raro, constitui um esboço de solução de um conflito. "Seria injustificado
qualificá-los como proféticos, pois, no fundo, não são mais proféticos do que
um prognóstico médico ou metereológico", aponta Jung(JUNG, 2012a, § 493).
Seriam uma combinação de possibilidades que podem ou não concordar, parcial ou
integralmente, com o curso real que os acontecimentos tomarão. Como teriam o
potencial de combinar percepções, pensamentos e sentimentos, bem como vestígios
subliminares da memória que não se encontram mais na consciência, do ponto de
vista de prognóstico "o sonho se encontra muitas vezes em situação mais
favorável do que a consciência (JUNG, 2012a, § 493).
Apresentado
este sistema analítico, vamos agora comentar três sonhos que focam na função
prospectiva.
O primeiro deles, que usaremos
aqui como exemplo, foi relatado pelo próprio psiquiatra no artigo de 1945 (JUNG,
2012b § 542):
Certa vez tratei um jovem que me contou, na
anamnese, que estava noivo, e de uma maneira muito feliz, de uma jovem de
"boa família". Nos sonhos, a personagem desta jovem assumia muitas
vezes um aspecto pouco recomendável. Do exame do contexto deduziu-se que o
inconsciente do paciente associava à figura da noiva toda espécie de histórias
escandalosas, provenientes de outra fonte, o que lhe parecia absolutamente
incompreensível e a mim naturalmente não menos também. A repetição constante
destas combinações me levou, contudo, a concluir que existia no rapaz, apesar
de sua resistência consciente, uma tendência inconsciente em fazer sua noiva
aparecer sob essa luz equívoca. Ele me disse que, se tal coisa fosse
verdadeira, isto representaria para ele um autêntico desastre. Sua neurose se
manifestara algum tempo depois da festa do noivado. Embora me parecessem inconcebíveis
e sem sentido, as suspeitas a respeito da sua noiva me pareciam constituir um
ponto de importância tão capital, que eu lhe aconselhei a fazer algumas
investigações a respeito. As pesquisas mostraram que as suspeitas eram fundadas
e o "choque" causado pela descoberta desagradável não só não abateu o
paciente, mas o curou de sua neurose e também de sua noiva. (JUNG, 2012b §
542).
Para Jung, os sonhos podem
apresentar três possibilidades. A primeira é a compensatória: "Se a
atitude consciente a respeito de uma situação dada da vida é fortemente
unilateral, o sonho adota um partido oposto" (JUNG,
2012b § 546), o que parece ter sido o caso da noiva de
"boa família", como se dizia na época. A segunda possibilidade é a
complementar, quando "a consciência guarda uma posição que se aproxima
mais ou menos do centro, o sonho se contenta em exprimir variantes (JUNG,
2012b § 546). Já se a atitude consciente é
adequada,"o sonho coincide com esta atitude e lhe sublinha assim as
tendências, sem perder a autonomia que lhe é própria" (JUNG,
2012b § 546).
Um segundo exemplo aponta a
natureza de alerta dos sonhos prospectivos. Certa vez um médico amigo de Jung,
fã do alpinismo, caçoou dele, questionando se podia ajudá-lo a analisar um
"sonho idiota":
Eu estava escalando uma montanha muito alta,
por um lado íngreme, coberto de neve. Vou subindo cada vez mais alto. O tempo
está maravilhoso. Quanto mais subo, mais me sinto bem. Tenho a sensação de que
seria bom se eu pudesse continuar subindo assim, eternamente. Chegando ao pico,
uma sensação de felicidade e arrebatamento me invade; esta sensação é tão
forte, que tenho a impressão de que poderia subir ainda mais e entrar no espaço
cósmico. E é o que faço. Subo no ar. Acordo em estado de êxtase (JUNG,
2012b § 323).
Como
sabia que nada faria o amigo abandonar o alpinismo, Jung pediu-lhe que ao menos
deixasse de escalar sozinho. O amigo riu do conselho. "Nunca mais o vi.
Dois meses depois, sofreu o primeiro acidente" (JUNG,
2012b, § 324). Estava desacompanhado, foi soterrado por
uma avalanche e salvo no último minuto por uma patrulha militar, que
casualmente se encontrava por perto. Três meses depois, o acidente foi fatal.
Acompanhado apenas de um amigo mais jovem, o médico alpinista estava já
descendo da montanha quando pisou em falso, caiu sobre a cabeça do amigo que o
esperava abaixo e ambos rolaram juntos para o precipício. "A cena foi
presenciada por um guia que se encontrava mais embaixo. Foi este o êxtase em
sua plenitude" (JUNG, 2012b, § 325).
O
terceiro exemplo vem de um sonho do próprio Jung. Foi descrito em artigo
escrito pela Profa. Dra. Lilian Wurzba, docente do Ijep, a partir de relatos na
introducão feita por Jung ao Livro Vermelho (JUNG, 2010), bem como em Memórias, Sonhos e
Reflexões (JUNG; JAFÉ, 1989). "Depois das visões que
tivera no final de 1913 e dos sonhos no início de 1914, sem qualquer sucesso em
interpretá-los, Jung chegou a pensar que estivesse com o `espírito
doente`" (WURZBA, 2018). "Como psiquiatra que era, pensou estar `a caminho
de ‘fazer uma esquizofrenia`, como revelou a Mircea Eliade em uma entrevista
para a revista Combat, em 1952":
Eu estava justamente nesta época preparando uma conferência
sobre esquizofrenia, para ser lida num congresso em Aberdeen, e não me cansava de
repetir para mim mesmo: "estarei falando de mim mesmo! Muito
provavelmente, enlouquecerei depois de ler a conferência". O congresso
teria lugar em julho de 1914 - exatamente no período em que, nos meus três
sonhos, via-me viajando pelos mares do sul. A 31 de julho, imediatamente após a
minha conferência, soube pelos jornais que eclodira a guerra. Finalmente,
entendi tudo. E quando desembarquei na Holanda, no dia seguinte, ninguém era
mais feliz do que eu. Agora tinha a certeza de que nenhuma esquizofrenia me
ameaçava. Compreendi que os meus sonhos e as minhas visões me chegavam do
subsolo do inconsciente coletivo. O que me restava agora fazer era aprofundar e
validar essa descoberta. E isso é o que estou tentando fazer há 40 anos
(McGuirre; Hull apud WURZBA, 2018, p. 213-214).
O
interessante neste sonho registrado na entrevista (MCGUIRRE; HULL, 1982,
p. 213-214)é que ele traz a tentativa de explanação que Jung da função
prospectiva dos sonhos ligada à noção de inconsciente pessoal e coletivo. Nos
dois primeiros casos, podemos deduzir que se tratavam de sonhos ligados à
esfera pessoal, que está mais próxima da consciência. Já o sonho de Jung
certamente estava mais ligado ao inconsciente coletivo, visto que provêm de uma
camada mais profunda. Daí a dificuldade para compreendê-los, visto que apenas o
material associativo do sonhador, baseado em relações pessoais ou experiências
de vida, são escassos para prognosticar um conflito como a Primeira Guerra
Mundial, que ceifaria vinte milhões de vidas.
Seja qual for a possibilidade
que pareça mais sensata, nunca é demais lembrar o alerta de Jung, de que
"toda interpretação é uma mera hipótese, apenas uma tentativa de ler um
texto desconhecido" (JUNG, 2012b § 322). Ainda assim, também de
acordo com Jung, convém lembrar que toda tentativa é válida. "Por isso é
raro que um indivíduo que tenha se submetido ao fatigoso trabalho de análise de
sonhos com a competente assistência de um especialista (...) não veja seu
horizonte se alargar e enriquecer" (JUNG, 2012a § 549).
Referências
JUNG, C. G. O livro vermelho: Liber Novus.
1. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
JUNG, C. G. Da essência dos
sonhos. In: A
natureza da psique. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a. p.
235-253.
JUNG, C. G. A aplicação prática
da análise dos sonhos. In: Ab-reação, análise dos sonhos e
transferência (OC 16/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012b.
p. § 294-352.
JUNG, C. G.; JAFÉ, A. Memórias, sonhos e reflexões.
11. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
MCGUIRRE, W.; HULL, R. F. C. C.G.Jung: entrevistas e encontros.
São Paulo: Cultrix, 1982.
Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP
- Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia
Junguiana, jornalista, Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo.
E-mail: analisejunguianasp@gmail.com
Como citar este artigo
MARTINEZ, Monica. Sonhos projetivos: uma
ponte para o futuro. Instituto
Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=425&ref=sonhos-projetivos-uma-ponte-para-o-futuro#conteudo>. Acesso em: 6 jun. 2019.
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