quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Pesquisa em psicoterapia

 


A Psicologia Junguiana tem muitos pontos fortes, mas ao menos um ponto frágil em relação às outras abordagens: a pesquisa. Para fins de comparação internacional, se pesquisarmos no portal PubMed® o termo "acceptance and commitment therapy", uma das modalidades da comportamental, obtemos o resultado de 1.297 textos completos (no período 1975-2021). Já para "jungian psychology" são 33 resultados (1973-2021) e 45 para "depth psychology", se quisermos rastrear outro nome pelo qual esta escola também é chamada. O PubMed, como se sabe, é um mecanismo de busca de base de dados Medline, que carrega mais de 33 milhões de citações e resumos de artigos científicos em biomedicina, sendo ligado à National Library Medicine, a Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos. 


Podemos dizer, portanto, que pesquisa em psicoterapia em geral tende a ser vista com cuidado pela própria natureza humana que envolve, mas que em outras áreas da Psicologia ela ocupa um espaço significativamente maior e, por extensão, recebe mais aportes de financiamento para a condução de novos estudos. Trata-se do axioma Tostines.  Quem tem mais idade talvez se lembre do slogan da bolacha Tostines: “vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho por que vende mais?”.

Do ponto de vista da psicoterapia junguiana, inserir a noção de pesquisa na clínica – leia-se penetrar no têmenos, o vaso sagrado e hermético que se constitui o setting terapêutico – é algo que está longe de ser um consenso. Além disto, pesquisas conduzidas de forma séria com seres humanos na contemporaneidade exigem a aprovação por comitês de ética institucionais em todo o mundo para serem legitimadas junto às suas respectivas comunidades científicas. 

De fato, a interação psíquico-corporal que se forma no vínculo terapêutico em análise junguiana, bem como a intuição do terapeuta, muitas vezes é determinante no modo como o processo será conduzido. Contudo, desde a sua origem – não nos esqueçamos que Freud e Jung eram médicos – a referência ao conhecimento clínico vigente é importante. O conhecimento psicológico e médico, claro, evoluem conforme as próprias áreas avançam, uma vez que estão localizados num tempo e espaço específicos. Prova é que muitos dos termos das patologias registradas na literatura pelos pioneiros da psicanálise não estão mais em uso, como histeria. Outros mudaram de nome. Esquizofrenia, o termo usado hoje, na época de Jung era conhecido como demência precoce.

Por isso, dada a sua importância, a pesquisa em psicoterapia não deve ser subestimada e, possivelmente, tenderá a crescer. O diálogo entre as áreas provavelmente aumentará. Como e quando ainda será motivo de muito debate na área. Com isso não se quer dizer que nós, terapeutas junguianos, viraremos seguidores passivos do DSM-5, o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria, que diagnostica transtornos mentais. Nem da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, mais conhecida como CID (atualmente na versão 10, mas com previsão de atualização para 11 em 2022).

Os sintomas são um dos pilares da Psicologia Junguiana, sobretudo a partir da sua perspectiva simbólica. Por outro lado, a pesquisa gera resultados que podem ser vitais para a qualidade e a eficácia da terapia, em particular as metanálises, que são aqueles estudos que comparam os resultados de um leque grande de investigações precedentes.

Mas como unir as duas vertentes, respeitando, na medida do possível, ambas? A meca dos estudos junguianos parece indicar ser um caminho possível. A mais recente newsletter do instituto junguiano de Zurique, datada de 7 de novembro de 2021, dá conta da criação em 30 de outubro de 2021 do Research Funding Association for Analytical Psychology (FoFöV), em tradução livre a Associação de Financiamento de Pesquisa para Psicologia Analítica (HORN, 2021).

O FoFöV surge como resposta à pressão existente para o recredenciamento na primavera de 2022 dos cursos de formação do C.G. Jung Institute 2022 junto ao Federal Office of Public Health (FOPH), Escritório Federal de Saúde Pública da Confederação Suíça. Sinaliza, portanto, uma tendência do próprio coração dos estudos junguianos em dedicar mais recursos à área científica.

Outra mudança de paradigma importante: a partir de 1 de outubro de 2021, os novos pacientes do ambulatório do Instituto C.G. Jung, em Zurique, receberão a aplicação de dois instrumentos. O primeiro é o formulário de avaliação HoNOS (Health of the Nation Outcome Scale para pessoas na faixa etária de 18 a 64 anos), bem como suas variantes etárias, o HoNOS-CA (para crianças e adolescentes) e o HoNOS 65+ (para pessoas com mais de 65 anos), com respectivamente 12, 13 e 12 itens). Estes instrumentos permitem aferir o comportamento, deficiências, sintomas e funcionamento social do paciente, tendo sido idealizados pelo Royal College of Psychiatrists, do Reino Unido. Para iniciar o tratamento, o paciente receberá para preencher em casa um segundo instrumento, a folha de autoavaliação BSCL (Brief Symptom Checklist, com 53 questões em 10 escalas). O uso destes dois instrumentos tem como proposta oferecer, ao terapeuta, informações básicas sobre a saúde física, emocional e mental do paciente. Estarão sendo utilizados também ao término do tratamento, permitindo refletir sobre o percurso do mesmo. Segundo a newsletter, a ideia não é a de que seja feito um diagnóstico por meio dos instrumentos, mas uma avaliação descritiva.

Em adição, a partir de 1º de janeiro de 2022, todos os alunos dos programas de formação do Instituto C. G. Jung em Zurique, que trabalham com pacientes como parte de seu estágio, deverão igualmente ser treinados em usar esses dois instrumentos. Os dados recolhidos serão usados pelos alunos para os relatórios de caso que devem apresentar para os exames de diploma e a Comissão de Pesquisa do Instituto Jung.

Será interessante acompanhar a experiência. No caso brasileiro, talvez não se queira seguir nem a proposta britânica do HoNOS, nem a estadunidense do DSM ou a internacional do CID. Ainda assim, há outras que podem ser consideradas, como a versão em português do instrumento abreviado de avaliação da qualidade de vida proposto pela Organização Mundial de Saúde, mais conhecida pela sigla WHOQOL-bref. Estudos brasileiros apontam que este instrumento composto de 26 questões divididas em quatro domínios (físico, psicológico, relações sociais e meio ambiente) apresentam consistência e qualidade de critério, entre outras na avaliação de qualidade de vida no país (FLECK et al., 2000). Mas, claro, é sempre um tema a ser debatido pela comunidade científica de analistas e pesquisadores do campo.

O Ijep emprega o Manual do Inventário de Sintomas de Stress para Adultos de Lipp, de Marilda Emmanuel Novaes Lipp, no Curso de Psicossomática. Nos demais, no presente momento, encontra-se em fase de estudo a adoção do mesmo ou de outro instrumento.

 

Monica Martinez - analista em formação pelo IJEP

Analista Didata – Waldemar Magaldi

 

Referências

FLECK, M. P. et al. Aplicação da versão em português do instrumento abreviado de avaliação da qualidade de vida “WHOQOL-bref”. Revista de Saúde Pública, v. 34, n. 2, p. 178–183, abr. 2000.

HORN, A. Founding of the Research Association for Analytical Psychology (FoFöV). C. G. Jung Institute Newsletter, 7 nov. 2021.

Lipp, M. E. N. (2000). Manual do Inventário de Sintomas de Stress para Adultos de Lipp (ISSL). São Paulo: Casa do Psicólogo.  


Como citar este artigo

MARTINEZ, Monica. Pesquisa em psicoterapia. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/artigos/show/pesquisa-em-psicoterapia. Acesso em 3 fev. 2022.     

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Individuação: a arte de tornar-se quem você é

 



Vivemos hoje numa sociedade politicamente polarizada, que enfrenta uma pandemia 

que agrava saúde física, emocional e mental, abalando a economia – principalmente das 

minorias e periferias – e causando incerteza em relação ao futuro. 


Neste contexto, o processo de individuação pode ser mais importante do que nunca.

Este desafiante momento global nos convida a nos voltar para dentro de nós mesmos, 

num movimento introspectivo que pode soar muito difícil – por vezes até insuportável –

para quem não busca conhecer a si mesmo.


Não por acaso, a meta, por assim dizer, da Psicologia Junguiana é o processo de 

individualização. Como diz Magaldi:

O processo de individuação é um caminho do Ego e para o Ego, 

potencialmente presente no Self, que é a totalidade psíquica, 

possibilitando a realização do Si-mesmo, a serviço da Alma, 

que também chamamos de Psique. Esse processo não tem fim, mas 

sua finalidade é o auto-conhecimento, por meio do confronto 

com o inconsciente até surgir o despertar do amor e, 

consequentemente da ética e da necessidade de servir cada vez mais 

para poder ser! (MAGALDI, 2019).


O alvo seria desvelar o que há de único, de individual, de específico para aquele ser humano. 

Nesse processo, ocorrem momentos em que é preciso deixar ir aspectos que não mais 

servem àquela pessoa.


Nas sociedades primevas, os ritos de passagem marcavam este momento de transição, quando 

por exemplo o menino passava por uma prova de coragem para poder se juntar aos homens 

na próxima caçada. Ou, dependendo do momento histórico, trocava os calças curtas por 

cumpridas. Embora também fosse uma questão de vestimenta, era sobretudo uma troca 

de papeis sociais, onde o menino dava lugar ao jovem adulto. Como diz Contrera:

E a ideia de renascimento não pode ser compreendida sem que 

consideremos que o renascimento se segue sempre e necessariamente 

a uma morte. Daí compreendermos que se não somos capazes de 

morrer para algumas coisas e para certos padrões, para relacionamentos 

e papeis, para personas e funcionalidades específicas, não estamos no 

caminho da individuação (CONTRERA, 2020).


Recentemente eu estava lendo um livro que reúne as entrevistas concedidas por C. G. Jung 

e me deparei com esta frase fantástica:

[...] todo o meu trabalho foi direcionado para mim; todos os livros 

que escrevi são apenas subprodutos de um processo íntimo de

individuação (JUNG, 1987, p. 395, tradução nossa).


Fiquei absolutamente tocada por esta afirmação. Só um ser humano que havia testado em si 

mesmo todo seu arcabouço metodológico ao longo de toda sua vida, de forma empírica, 

poderia se dar ao luxo de fazer tal confissão. Alguém auge da sabedoria dos 84 anos,  

que morreria dois anos depois e que se via como um inconsciente que se realizou 

(JUNG; JAFFÉ, 1989, p. 19).


Jung elaborou seus métodos e técnicas porque ele tinha uma dada história de vida, porque 

estava instalado numa dada cosmovisão de mundo que funcionava como raiz da árvore 

conceitual que propôs.


Da mesma forma que Sigmund Freud elaborou sua teoria sobre o complexo de Édipo, 

entre outras. Sabemos por vários relatos que o fundador da psicanálise teve uma relação 

muito intensa com sua mãe, que via nele o germe de um ser humano notável, por quem 

aquela criança era platonicamente encantada (SCHULTZ; SCHULTZ, 2009, 313).


Já Alfred Adler, por seu lado, teve uma mãe que o colocava para baixo 

(SCHULTZ; SCHULTZ, 2009, 364). Ainda assim, e provavelmente por conta desta relação, 

Adler acabou propondo uma teoria que abarca o processo de inferioridade em sua 

compensação com pensamentos, sentimentos e ações relacionadas com o poder.


Para mim, o que Jung quer dizer com tal frase – e o que os exemplos de Freud e Adler entre 

outro ilustram – é que temos várias teorias, métodos e técnicas à nossa disposição. Muitos 

são os professores que vieram antes de nós. E é maravilhoso que o tenhamos. Afinal, em 

muitos momentos da vida, é o amparo de psicólogos e analistas que não nos deixam nos

perder nas profundezas da noite escura da alma.


Neste contexto, o processo de análise junguiana é uma das muitas formas de se 

compreender profundamente quem somos, incluindo as partes que não apreciamos.  

Mas na hora H, temos de saber ir além destes ensinamentos para fazer o nosso caminho.


E, assim, descobrir o processo de individuação que funciona para nós mesmos. 

Como diz outro pensador, o mitólogo estadunidense Joseph Campbell, esses 

professores nos ensinam o caminho. 


Mas é preciso descobrir qual é o nosso caminho (CAMPBELL; MOYERS, 1990) 

para que a mágica da descoberta funcione.


Senão corremos o risco de não viver nossa vida, de ficarmos papagueando, de forma 

livresca e sem alma, teorias, métodos e técnicas que não são feitos sob medida para o nosso 

desenvolvimento psíquico.


Para saber mais

CAMPBELL, J.; MOYERS, B. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

CONTRERA, M. S. O processo de individuação e o caminho do renascimento

Disponível em: 

<https://www.ijep.com.br/artigos/show/o-processo-de-individuacao-e-o-caminho-do-

renascimento>. Acesso em: 8 abr. 2021.

JUNG, C. G. C. G. Jung Speaking: interviews and encounters. New Jersey: Princeton 

University Press, 1987.

JUNG, C. G.; JAFFÉ, A. Memórias, sonhos e reflexões. 11. ed. Rio de Janeiro: 

Nova Fronteira, 1989.

MAGALDI, W. Autoconhecimento como caminho de cura pessoal e social: 

individuação e egoDisponível em: 

<https://www.ijep.com.br/artigos/show/autoconhecimento-como-caminho-de-cura-pessoal

-e-social-individuacao-do-ego>. Acesso em: 8 abr. 2021.

SCHULTZ, D. P.; SCHULTZ, S. E. História da psicologia moderna. 12. ed. São Paulo: 

Cengage Learning, 2009.


Monica Martinez - 13/05/2021


Para citar

MARTINEZ, Monica. Individuação: a arte de tonar-se quem você é. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/artigos/show/individuacao-a-arte-de-tornar-se-quem-voce-e>. Acesso em: 15 mai. 2021.

terça-feira, 9 de março de 2021

Zeitgeist: ideias para viver (e sobreviver) ao espírito do nosso tempo

 



Vivemos hoje numa sociedade politicamente polarizada, com eleições importantes previstas para dois anos, que enfrenta uma pandemia que agrava a saúde física, emocional e mental, abalando a economia – principalmente das minorias e periferias – e causando incerteza em relação ao futuro. Neste contexto, o processo de individuação pode ser mais importante do que nunca

Zeitgeist é um termo que, em alemão, significa espírito do tempo. Ele marca, desde os românticos alemães, o conjunto do clima intelectual, social e cultural de certa época histórica, tendo ficado mais conhecido com uma obra de Hegel, Filosofia da História.

Não tenho graduação em filosofia nem falo alemão, mas me parece inegável que este termo nos ajude a pensar bastante a atualidade. Não ousaria dizer entendê-la, porque concordo com Jung quando ele diz que um dos métodos de compreensão fundamentais, ao menos em Psicologia, é o histórico. Em outras palavras, é preciso observar por um bom tempo a água correndo debaixo de uma ponte para se poder localizar com alguma precisão de onde ela vem e, sobretudo, onde vai desembocar.

Um exemplo: do ponto de vista mundial, porque estaríamos com os líderes que estamos? Nem é preciso assistir ao “debate” (sim, entre aspas, será que foi mesmo um debate ou uma briga?) entre os candidatos 2020 ao posto número um do governo da importante nação mundial para compreender o que os eleitores/as estadunidenses mais conscientes devem estar sentindo.  Ou o que sentiremos em breve em nossas próprias eleições.

Tenho me perguntado muito o porquê de termos tido em nível mundial esta guinada para a direita, com os/as eleitores/as de sistemas democráticos elegendo líderes como os atuais (deixo aqui para cada um escolher o adjetivo que preferir para defini-los/las).

Do ponto de vista junguiano, a primeira noção que vem à cabeça é a de projeção. Estaríamos, portanto (e vou usar a terceira pessoa no plural intencionalmente), projetando conteúdos inconscientes nas lideranças eleitas.

Em Aion, Jung lembra que “a sombra se constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispensar energias morais” (JUNG, 2012, § 14).

Moral e, por extensão, moralismo, são palavras complexas. Afinal, um moralista não deixa de ser alguém que tenta reprimir nos outros o que ele/ela não consegue reprimir nele/nela mesmo/a. Hipócrita definiria melhor? Talvez. Mestre Houaiss nos lembra que em grego hupokritḗs, dentre outros significados, quer dizer intérprete, ator, de onde deriva fingimento, ser o que não se é.

Esta projeção coletiva, se percebida – e encarada – de forma consciente, poderia levar ao autoconhecimento. Claro que seria necessário, em geral, acompanhamento terapêutico e “trabalho árduo que pode se estender por um largo espaço de tempo” (JUNG, 2012, § 14).

Mais fácil para o indivíduo, então, seria deixar de lado noções como autonomia, tão caras aos estudos junguianos e outras escolas da psicologia, como as que lidam com aprendizagem (TAILLE; OLIVEIRA; DANTAS, 2019).

E não opor resistência à consciência de manada. Noção que, tomando emprestado do psicólogo francês Pierre Janet (1859-1947), Jung chamava de abaissement de niveau mental, em português rebaixamento do nível mental.

Trata-se do “esmagamento do eu por conteúdos inconscientes e a consequente identificação com a totalidade pré-consciente” (JUNG, 2012b, §430). Ele continua o parágrafo dizendo que esse fenômeno “possui uma prodigiosa virulência psíquica ou um poder de contágio e, por isto, é capaz dos mais desastrosos resultados (idem).

Convém sempre lembrar que esta obra – A natureza da psique –, fundamental para a compreensão da psicologia complexa, foi publicada pela primeira vez em 1948. E que nela Jung refletia sobre os “fenômenos psíquicos observados recentemente na Alemanha” (JUNG, 2012b, §430), isto é, durante a Segunda Guerra Mundial.

Se estamos a falar de bandos, também é preciso lembrar que primatologistas como o holandês Frans de Waal, que estudam o comportamento de chimpanzés, destacam que os machos (e fêmeas) alfa tem muitos atributos além da força física para se manter no cargo. Os mais importantes seriam a capacidade de solucionar conflitos por meio da manutenção da paz do bando e de confortar os demais integrantes que passam por algum tipo de situação difícil.

Uma palestra de Waal, autor de A era da empatia (WAAL, 2010), pode ser vista gratuitamente neste link: https://www.ted.com/talks/frans_de_waal_the_surprising_science_of_alpha_males?language=pt-br

Voltando à Jung, na mesma obra ele recomenda a quem se sente temeroso de entrar na vibe desta consciência de manada a empregar alguma medida compensatória da consciência do eu. “Eu aconselharia a quem se sente ameaçado por tais tendências a pendurar uma imagem de São Cristóvão na parede e a meditar sobre ela” (JUNG, 2012b, §430), sugere.

Quem pesquisar a história do grande (em tamanho) São Cristóvão pode perceber que se trata de uma metáfora usada por Jung para não deixar o ego inflar e se render ao self por meio do processo de individuação, “que não exclui o mundo; ao contrário, o engloba” (JUNG, 2012b, §432). E o caminho do autoconhecimento via introspecção é um recurso usado desde a aurora da Psicologia, que ajuda até hoje neste processo. 

Reduzir um pouco o burburinho externo e se abrir para o mundo interior, da forma que cada um sentir ser o seu caminho, pode ser salutar para manter a saúde psíquica e estar apto / apta a exercer uma voz ativa e cidadã neste momento delicado da história da humanidade.

Para saber mais

JUNG, C. G. Aion: estudo sobre o simbolismo do si-mesmo (OC 9/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a.

JUNG, C. G. A natureza da psique (OC 8/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012b.

TAILLE, Y. DE LA; OLIVEIRA, M. K. DE; DANTAS, H. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 2019.

WAAL, F. DE. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


Para citar

MARTINEZ, Monica. Zeitgeist: ideias para viver (e sobreviver) ao espírito do nosso tempo. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/artigos/show/ansiedade-na-relacao-mae-e-filha-o-mito-de-demeter-e-core-persefone>. Acesso em: 9 mar. 2021.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Ansiedade na relação mãe-filha: o mito de Deméter e Core-Perséfone

         


        


        Certa vez eu estava no vestiário da academia de ginástica depois da aula. Uma mãe, de cerca de uns 45 anos, compartilhava com as amigas uma grande dor. A filha havia passado no vestibular da maior universidade pública brasileira. Na hora de fazer a matrícula, ela havia dito para a mãe-torista: “Mãe, eu te amo, mas daqui em frente eu vou sozinha”. E saltou do carro. Lá foi a mocinha de 18 anos, lépida e faceira, tomando as rédeas de seu destino.

         Lembro de ter tido presença de espírito de congratular a mãe estarrecida. “Parabéns, você fez um grande trabalho como mãe. O contrário – se sua filha estivesse colada em você – é que seria um problema”. Talvez tenha suavizado um pouco a dor, não sei dizer. A gente nunca sabe. Tempos depois, ao pensar no fato, me veio de estalo o mito de Deméter e Perséfone, que simboliza bem a ansiedade da separação de mães e filhas.

         A raiz do que sabemos deste mito pode ser encontrada no hino à Demeter, atribuído a Homero, que teria vivido no século VII a.C. (HOMERO, 2009). A narrativa começa no Monte Olimpo. Como sintetiza bem Junito Brandão, Deméter era a “deusa maternal da Terra” (BRANDÃO, 2014, p. 165). A sociedade grega era patriarcal e escravagista. Neste contexto, o regente do Olimpo, Zeus, era casado com a ciumenta Hera, mas teve tantos casos extraconjugais que as diversas genealogias gregas não dão conta de organizar. Um deles foi com sua irmã, Deméter, que teve com ele sua única filha, Core – que quer dizer jovem ou virgem.

         Deméter literalmente blindou a filha numa eterna primavera, longe de homens e problemas. Se Hera personifica o arquétipo da esposa, Deméter é o da mãe. Certo dia, a jovem estava colhendo flores quando se aproximou de um abismo para colher um narciso. O que Core não sabia é que sua beleza havia despertado o interesse de um tio, Hades, o senhor do submundo. A jovem foi, por assim dizer, tragada para o seio da terra.

         Sua mãe ficou desconsolada. Que mãe não ficaria? Por nove dias e noites, segundo o relato de Homero, vagou em vão ansiando por recuperar a filha. A deusa Hécate se apiedou e foi ter com ela, dizendo que nada havia visto. Já o deus solar Hélio, que tudo vê, relatou quem tinha sido responsável pelo rapto.

         As queixas de Deméter não moveram uma pena. Desconsolada, decidiu não voltar ao Olimpo, mas também deixou de cuidar da Terra. Como uma anciã, Doso, foi parar em Elêusis, cidade que fica a uns 20 km de Atenas. Lá foi acolhida por uma poderosa família local. Mas uma deusa não perde a majestade e tempos depois o casal percebeu que não se tratava de uma mortal comum (o fato de a terem pego tentando “imortalizar” o filho caçula no fogo fez com que ficassem com a pulga atrás da orelha). Deméter acaba pedindo que lhe construam um belo templo, no qual os gregos realizavam anualmente um festival que celebrava os mistérios eleusinos – um ritual de iniciação que celebrava o mito da mãe e filha. 

         Sem sua deusa, a terra fica devastada O clamor dos seres humanos e dos deuses amolece Zeus, que negocia com o irmão e pede a Hermes – o mensageiro dos mundos – que fosse ao submundo resgatar Perséfone. Notem que a jovem esposa do deus Hades agora recebe um novo nome, que personifica sua nova persona ou máscara social.

         Hades aceita o trato, mas não é bobo. Dá uma romã para a jovem esposa comer antes de partir. Há a tradição de que aquele que comer algo nos mundos subterrâneos não poderá mais sair dele.  Homero não diz isto à esposa, claro, mas gosto de pensar que Perséfone sabia muito bem o que aconteceria se provasse daquela fruta, símbolo da fertilidade.

          O resultado é que todos têm de ceder um pouco, isto é, suas personas tem de se ajustar à nova realidade. Deméter fica com a filha por nove meses. Hades fica com a esposa por três meses.  Contudo, gosto de pensar que Perséfone fica consigo mesmo por 12 meses do ano. Para mim, foi ela quem mais ganhou com a história, pois que a jornada permitiu à jovem perder a inocência da inconsciência em troca da descoberta sobre si mesma.

         Meses depois, estava eu no consultório atendendo uma analisanda grávida. Uma das dores da jovem era como ensinaria a filha a se relacionar com os homens. Internamente, eu sorri. O novo papel social que a gestante estava sendo convidada a assumir estava devidamente ativando arquétipos ligados a maternagem. Salve Deméter! Mas a ansiedade a estava levando longe demais. Naquele dia, eu a conduzi gentilmente de volta ao tempo presente e à consciência do seu corpo que se arredondava com suavidade. Por meio da conversa das tramas de tricôs e da vida.

Dra. Monica Martinez é especialista em Psicologia Junguiana pelo IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa -  E-mail: monicamartinezpsi@gmail.com. 


Referências

BRANDÃO, J. DE S. Dicionário Mítico-Etimológico. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.

HOMERO. Hino homérico II: a Demeter. São Paulo: Odysseus, 2009.


Para citar este artigo


MARTINEZ, Monica. Ansiedade na relação mãe-filha: o mito de Deméter e Core-Perséfone. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/artigos/show/ansiedade-na-relacao-mae-e-filha-o-mito-de-demeter-e-core-persefone>. Acesso em: 18 set. 2020.