quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Sonhos: uma ponte para o inconsciente


Sonhos: uma porta de entrada para o inconsciente
Como é sabido, a física moderna utiliza a equação E=mc2  como parte da Teoria ou Princípio da Relatividade, desenvolvida pelo físico alemão Albert Einstein (1879-1955). Na minha prática como analista junguiana, eu me norteio pela equação Ψ=3SC. De um lado, empregando o  símbolo Ψ (lê-se: "psi"), letra  do alfabeto grego que simboliza a área da psicologia. Do outro, os pilares dos métodos da psicologia junguiana: a  compreensão dos sintomas, sincronicidades e dos sonhos, bem como o emprego das terapias criativas, na tentativa de, quando necessário, reorganizar a contraparte não física do ser humano que chamamos de psique.

Este artigo faz uma abordagem introdutória dos sonhos, que o psicoterapeuta junguiano Robert H. Hopcke denomina de "pedra fundamental" da técnica analítica junguiana(HOPCKE, 2012, p. 35). E porque é fundamental? Em seu texto mais recomendado sobre o assunto (JUNG, 2012), Jung deixa claro que os sonhos têm um significado prático fundamental porque são uma expressão direta do inconsciente, sendo um canal para a compreensão das etiologias ( determinação das causas e origens) das neuroses. Criado pelo médico escocês William Cullen (1710-1790)  em 1787, o termo neurose indica transtornos que, embora não severos,  se instalam como um aviso de que algo não vai bem, obviamente causando tensão e interferindo em alguma medida na capacidade do indivíduo se ajustar ao seu meio. 

O objetivo da análise dos sonhos em terapia é "a descoberta e a conscientização de conteúdos até então inconscientes" (JUNG, 2012,  § 294). A abordagem freudiana entende os sonhos como fachadas, que dissimulam os conteúdos oníricos. Já a junguiana os entende como uma linguagem simbólica, como quando nos deparamos frente a um texto desconhecido. Assim, para Jung, os sonhos são o que são.

Para decifrá-los, por assim dizer, Jung propõe um método simples e eficaz. Enquanto um psicanalista usa seu conhecimento para interpretar o sonho trazido pelo paciente, o analista junguiano trabalha a partir do contexto que cerca a narrativa onírica na perspectiva do analisando. "É só a partir do conhecimento da situação consciente que se pode descobrir que sinal dar aos conteúdos inconscientes" (JUNG, 2012,  § 333).

O psiquiatra suíço lembra que muitas vezes "os sonhos iniciais são de uma clareza e transparência espantosas" (JUNG, 2012,  § 313), no que concordo com ele. Certa vez um paciente me trouxe na primeira consulta  um sonho no qual sua privada transbordava de material fecal, e a água que impulsionava o conteúdo para fora era clara e cristalina. Ao cair no chão, as fezes se transformavam em tartarugas, cujo significado em várias culturas pode ser ligado ao masculino e feminino, ao humano e ao cósmico,  como suporte do mundo e garantia de estabilidade (CHEVALIER, 1988).

Por mais promissor que um sonho desta natureza seja como parte do diagnóstico, funcionando como um prognóstico e norteando o processo analítico, o que importa na análise junguiana dos sonhos num primeiro momento não é o que o analista sabe sobre o símbolo. Como uma parteira, ele deve deixar aflorar o que o analisando sabe. O que importa, portanto, é a comprensão do paciente desse conteúdo que ainda não é consciente.

Para isso, Jung recomenda foco no contexto do sonho, sem se dispersar muito nas associações livres. "As associações livres nos fazem descobrir os complexos, mas, raramente, o sentido de um sonho", adverte Jung (JUNG, 2012,  § 320). "Para compreender o sentido de um sonho tenho que me ater tão fielmente quanto possível à imagem onírica", explica (JUNG, 2012,  § 320). Voltemos à tartaruga. Na cabeça do analista rondam algumas perguntas possíveis: qual é o contexto dessa tartaruga para aquele analisando específico? O que havia ocorrido nos dias precedentes? Há algo no seu histórico ligado à esta imagem? Com qual finalidade o insconsciente teria empregado aquela imagem? Para que ela foi usada? Ajuda também ter em mente a regra básica que remete à teoria das compensações do sistema autorregulador da psique: se o que falta de um lado cria um excesso do outro, que atitude consciente estaria sendo compensada pelo sonho? (JUNG, 2012,  § 330). Se o analisando verbalizar espontaneamente que a tartaruga para ele representa as forças ctônicas de estabilidade, a pergunta seria: o que o estaria desestabilizando, deixando sem chão naquele momento? Neste caso ajuda sempre remeter à queixa que o trouxe até ali para não se perder na seara de problemas que podem emergir concomitantemente. É por isso que em análise junguiana não estamos propondo interpretações, mas ampliações de sonhos.

Não raro, a clareza dos sonhos iniciais se perde no processo. Neste momento o analisando pode apresentar uma pressa neurótica e o desejo de progredir mais e rápido. Na minha experiência clínica, o insconsciente costuma enviar sonhos de alerta, como elevadores que sobem velozmente em prédios antigos sem segurança, locais muito altos onde o indivíduo se sente isolado, desprotegido, e outras imagens que sugerem que é preciso reduzir o ritmo. Em geral, o sonhador não percebe, por si só, de maneira consciente, essa necessidade.

O fato é que nesses momentos a tentação pode ser grande, por parte do analista, de entrar com sua erudição e "seu" conteúdo e "resolver o problema" para o analisando. O que está longe de ser recomendado, uma vez que o próprio inconsciente está emitindo sinais claros de que há uma situação de conflito ainda não resolvida, que pede mais tempo para ser transcendida. "Em outras palavras, é melhor renunciar a tudo o que se sabe melhor, e de antemão, para pesquisar o que as coisas significam para o paciente" (JUNG, 2012,  § 342).

Na assimilação gradual dos conteúdos oníricos,"é de extrema importância não ferir e muito menos destruir os valores verdadeiros da personalidade consciente" (JUNG, 2012,  § 338). O motivo é simples: o processo de análise junguiana se faz por meio do ego do analisando. Se o desestruturarmos, "não haveria mais quem poderia assimilar" (JUNG, 2012,  § 338). E o processo seria no mínimo ineficaz. Da mesma forma, é importante o analista considerar as convicções filosóficas, religiosas e morais conscientes do analisando, para trabalhar em parceria com elas, e não impor seu sistema de crença e valores.

Ir contra a maré, por assim dizer, pode por em risco todo o processo analítico. "Falha também por antecipar o desenvolvimento do paciente, o que o paralisa" (JUNG, 2012,  § 314). Nesse momento, é preciso ter paciência de ambos lados, como numa gestação que ainda não chegou a termo. Até porque Jung adverte que "existem sonhos que simplesmente não são compreendidos pelo médico, nem pelo paciente" (JUNG, 2012,  § 318). Há, claro, limites ao método de ampliação, e este é um deles.

Por outro lado, para que o método possa ser empregado com o máximo de chances de ser bem-sucedido, é vital que os analisandos mantenham um diário, registrando de forma clara seus sonhos logo ao acordarem, pois se trata de material volátil que segundos depois do despertar pode estar perdido. Um cadernino na mesa de cabeceira ainda é a melhor forma para fazer anotações, se bem que o onipresente smartphone está se tornando um equipamento indispensável de registro para muitos analisandos. De toda forma, é importante não cair na tentação e fazer o registro por meio da gravação de um áudio. Isso porque a escritura ajuda o conteúdo a se fixar no ego, estimulando o diálogo entre o inconsciente e o consciente.

O analista junguiano Daniel Gomes dá uma dica interessante: "quando se lembrar de um sonho, encare-o com a curiosidade de uma criança, mas com grande respeito, pois estes sonhos podem conter o mapa com os caminhos de sua realização" (GOMES, 2016).

Para a sessão, é importante o analisando levar este registro e, se possível, juntamente com o material referente ao seu contexto. Jung salienta que faz parte do método encorajar os analisandos a trabalhar ativamente na elaboração de seus conteúdos oníricos, aprendendo "a lidar corretamente com seu inconsciente, mesmo sem o médico" (JUNG, 2012,  § 322).

O resultado de quando o processo está bem encaminhado é visível, pois no momento em que o analisando passa a assimilar seus conteúdos inconscientes os níveis de tensão e ansiedade vão sendo gradualmente diminuídos, uma vez que o conteúdo reprimido ou que era visto como perigoso passa a ser integrado.
Finalmente, uma andorinha sozinha não faz verão. Jung sugere que a ampliação "só adquire uma relativa segurança numa série de sonhos, em que os sonhos posteriores vão corrigindo as incorreções cometidas nas interpretações anteriores" (JUNG, 2012,  § 322). Sim, o percurso pode sofrer desvios - afinal analisando e analista são humanos -, mas o curso correto é possível de ser retomado se o foco continuar nos conteúdos trazidos pelos sonhos.  Mas os sonhos seriados já são um tema para um próximo artigo.

Referências
CHEVALIER, J. G. A. Dicionário dos símbolos. 24. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1988.
GOMES, Daniel. Os sonhos e seu papel na historia da humanidade. 5 jul 2016. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.facebook.com/institutojunguiano/posts/os-sonhos-e-seu-papel-na-historia-da-humanidadepara-algumas-pessoas-sonhar-n%C3%A3o-p/1174413959281650/>. Acesso em: 30 dez. 2018.
HOPCKE, R. H. Guia para a obra completa de C. G. Jung. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
JUNG, C. G. A aplicação prática da análise dos sonhos. In: Ab-reação, análise dos sonhos e transferência (OC 16/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. p. § 294-352.
Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista, Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo, e na Granja Viana (Cotia, SP). E-mail: analisejunguianasp@gmail.com.

Como citar este artigo
MARTINEZ, Monica. Sonhos: uma ponte para o inconsciente. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=427&ref=sonhos-uma-ponte--para-o-inconsciente#conteudo>. Acesso em: 8 ago. 2019.

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Sonhos projetivos: uma ponte para o futuro





Para o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), o objetivo do tratamento de neuroses seria o de estalecer a harmonia possível entre o consciente e o inconsciente.

O estudo dos sonhos e a consequente proposição de um método para emprego na prática terapêutica foi uma tarefa à qual Jung se dedicou ativamente ao longo da vida.

Não é uma prática simples, nem a ser feita de forma leviana. Em um texto publicado na revista Ciba em 1945 – portanto quando ele tinha já tinha 70 anos – Jung dizia:

A compreensão do sonho, de fato, é um trabalho tão difícil, que há muito tempo eu estabeleci como regra, quando alguém me conta um sonho e pede minha opinião, dizer, antes do mais, a mim mesmo: `Não tenho a mínima ideia do que este sonho quer significar. Após esta constatação, posso me entregar ao trabalho da análise propriamente dita do sonho (JUNG, 2012a, § 533).

Jung propunha quatro funções para os sonhos, dividindo-as nas seguintes categorias: compensadores, redutores ou retrospectivos, reativos e prospectivos (JUNG, 2012a, § 499).

1)    Sonhos compensadores: o psiquiatra suíço dizia que os sonhos "comportam-se como compensações da situação da consciência em determinado momento" (JUNG, 2012a, § 487). Pois isso, para analisá-los  corretamente, é preciso "possuir um conhecimento acurado da consciência neste preciso momento, porque o sonho encerra o seu complemento inconsciente, ou seja, o material constelado com o estado momentâneo da consciência" (JUNG, 2012a, § 477).
2)    Sonhos redutivos ou retrospectivos:  Jung entendia que certos sonhos tentam autorregular a psique de indivíduos "cuja atitude consciente e esforço de adaptação ultrapassam as capacidades individuais, ou seja, parecem melhores e mais valiosos do que são na realidade" (JUNG, 2012a, § 496). Ele tenderia "a desintegrar, a dissolver, depreciar, e mesmo destruir e demolir" (JUNG, 2012a, § 496). A função negativamente compensadora, também chamada de função redutora do inconsciente, teria um efeito salutar, pois afetaria positivamente apenas a atitude, não a personalidade do sonhador. Em outras palavras, "baixaria sua bola", desinflando o ego.
3)    Sonhos reativos: Jung alerta que esse tipo de sonho, que parece ser apenas a reprodução de uma experiência consciente carregada de afeto, demanda a investigação do "aspecto simbólico que escapou ao sujeito e que é o único fator que provoca a reprodução onírica desta experiência" (JUNG, 2012a, § 499). Ele os diferencia dos sonhos de vítimas de guerras, por exemplo, que  desencadeiam "muitos sonhos reativos puros nos quais o trauma é o fator mais ou menos determinante" (JUNG, 2012a, § 499). "A análise (...) pode resolver a questão porque, nesse caso, a reprodução da cena dramática se interrompe se a interpretação é correta, ao passo que a reprodução reativa não é afetada pela análise do sonho" (JUNG, 2012a, § 501).
4)    Sonhos prospetivos: segundo Jung, a função prospectiva sugere uma antecipação, oriunda do inconsciente, de atividades conscientes futuras. Não raro, constitui um esboço de solução de um conflito. "Seria injustificado qualificá-los como proféticos, pois, no fundo, não são mais proféticos do que um prognóstico médico ou metereológico", aponta Jung(JUNG, 2012a, § 493). Seriam uma combinação de possibilidades que podem ou não concordar, parcial ou integralmente, com o curso real que os acontecimentos tomarão. Como teriam o potencial de combinar percepções, pensamentos e sentimentos, bem como vestígios subliminares da memória que não se encontram mais na consciência, do ponto de vista de prognóstico "o sonho se encontra muitas vezes em situação mais favorável do que a consciência (JUNG, 2012a, § 493).

Apresentado este sistema analítico, vamos agora comentar três sonhos que focam na função prospectiva.

O primeiro deles, que usaremos aqui como exemplo, foi relatado pelo próprio psiquiatra no artigo de 1945 (JUNG, 2012b § 542):

Certa vez tratei um jovem que me contou, na anamnese, que estava noivo, e de uma maneira muito feliz, de uma jovem de "boa família". Nos sonhos, a personagem desta jovem assumia muitas vezes um aspecto pouco recomendável. Do exame do contexto deduziu-se que o inconsciente do paciente associava à figura da noiva toda espécie de histórias escandalosas, provenientes de outra fonte, o que lhe parecia absolutamente incompreensível e a mim naturalmente não menos também. A repetição constante destas combinações me levou, contudo, a concluir que existia no rapaz, apesar de sua resistência consciente, uma tendência inconsciente em fazer sua noiva aparecer  sob essa luz equívoca. Ele me disse que, se tal coisa fosse verdadeira, isto representaria para ele um autêntico desastre. Sua neurose se manifestara algum tempo depois da festa do noivado. Embora me parecessem inconcebíveis e sem sentido, as suspeitas a respeito da sua noiva me pareciam constituir um ponto de importância tão capital, que eu lhe aconselhei a fazer algumas investigações a respeito. As pesquisas mostraram que as suspeitas eram fundadas e o "choque" causado pela descoberta desagradável não só não abateu o paciente, mas o curou de sua neurose e também de sua noiva. (JUNG, 2012b § 542).

Para Jung, os sonhos podem apresentar três possibilidades. A primeira é a compensatória: "Se a atitude consciente a respeito de uma situação dada da vida é fortemente unilateral, o sonho adota um partido oposto" (JUNG, 2012b § 546), o que parece ter sido o caso da noiva de "boa família", como se dizia na época. A segunda possibilidade é a complementar, quando "a consciência guarda uma posição que se aproxima mais ou menos do centro, o sonho se contenta em exprimir variantes (JUNG, 2012b § 546). Já se a atitude consciente é adequada,"o sonho coincide com esta atitude e lhe sublinha assim as tendências, sem perder a autonomia que lhe é própria" (JUNG, 2012b § 546).

Um segundo exemplo aponta a natureza de alerta dos sonhos prospectivos. Certa vez um médico amigo de Jung, fã do alpinismo, caçoou dele, questionando se podia ajudá-lo a analisar um "sonho idiota":

Eu estava escalando uma montanha muito alta, por um lado íngreme, coberto de neve. Vou subindo cada vez mais alto. O tempo está maravilhoso. Quanto mais subo, mais me sinto bem. Tenho a sensação de que seria bom se eu pudesse continuar subindo assim, eternamente. Chegando ao pico, uma sensação de felicidade e arrebatamento me invade; esta sensação é tão forte, que tenho a impressão de que poderia subir ainda mais e entrar no espaço cósmico. E é o que faço. Subo no ar. Acordo em estado de êxtase (JUNG, 2012b § 323).

Como sabia que nada faria o amigo abandonar o alpinismo, Jung pediu-lhe que ao menos deixasse de escalar sozinho. O amigo riu do conselho. "Nunca mais o vi. Dois meses depois, sofreu o primeiro acidente" (JUNG, 2012b, § 324). Estava desacompanhado, foi soterrado por uma avalanche e salvo no último minuto por uma patrulha militar, que casualmente se encontrava por perto. Três meses depois, o acidente foi fatal. Acompanhado apenas de um amigo mais jovem, o médico alpinista estava já descendo da montanha quando pisou em falso, caiu sobre a cabeça do amigo que o esperava abaixo e ambos rolaram juntos para o precipício. "A cena foi presenciada por um guia que se encontrava mais embaixo. Foi este o êxtase em sua plenitude" (JUNG, 2012b, § 325).

O terceiro exemplo vem de um sonho do próprio Jung. Foi descrito em artigo escrito pela Profa. Dra. Lilian Wurzba, docente do Ijep, a partir de relatos na introducão feita por Jung ao Livro Vermelho (JUNG, 2010), bem como em Memórias, Sonhos e Reflexões (JUNG; JAFÉ, 1989). "Depois das visões que tivera no final de 1913 e dos sonhos no início de 1914, sem qualquer sucesso em interpretá-los, Jung chegou a pensar que estivesse com o `espírito doente`" (WURZBA, 2018). "Como psiquiatra que era, pensou estar `a caminho de ‘fazer uma esquizofrenia`, como revelou a Mircea Eliade em uma entrevista para a revista Combat, em 1952":

Eu estava justamente nesta época preparando uma conferência sobre esquizofrenia, para ser lida num congresso em Aberdeen, e não me cansava de repetir para mim mesmo: "estarei falando de mim mesmo! Muito provavelmente, enlouquecerei depois de ler a conferência". O congresso teria lugar em julho de 1914 - exatamente no período em que, nos meus três sonhos, via-me viajando pelos mares do sul. A 31 de julho, imediatamente após a minha conferência, soube pelos jornais que eclodira a guerra. Finalmente, entendi tudo. E quando desembarquei na Holanda, no dia seguinte, ninguém era mais feliz do que eu. Agora tinha a certeza de que nenhuma esquizofrenia me ameaçava. Compreendi que os meus sonhos e as minhas visões me chegavam do subsolo do inconsciente coletivo. O que me restava agora fazer era aprofundar e validar essa descoberta. E isso é o que estou tentando fazer há 40 anos (McGuirre; Hull apud WURZBA, 2018, p. 213-214).

O interessante neste sonho registrado na entrevista (MCGUIRRE; HULL, 1982, p. 213-214)é que ele traz a tentativa de explanação que Jung da função prospectiva dos sonhos ligada à noção de inconsciente pessoal e coletivo. Nos dois primeiros casos, podemos deduzir que se tratavam de sonhos ligados à esfera pessoal, que está mais próxima da consciência. Já o sonho de Jung certamente estava mais ligado ao inconsciente coletivo, visto que provêm de uma camada mais profunda. Daí a dificuldade para compreendê-los, visto que apenas o material associativo do sonhador, baseado em relações pessoais ou experiências de vida, são escassos para prognosticar um conflito como a Primeira Guerra Mundial, que ceifaria vinte milhões de vidas.

Seja qual for a possibilidade que pareça mais sensata, nunca é demais lembrar o alerta de Jung, de que "toda interpretação é uma mera hipótese, apenas uma tentativa de ler um texto desconhecido" (JUNG, 2012b § 322). Ainda assim, também de acordo com Jung, convém lembrar que toda tentativa é válida. "Por isso é raro que um indivíduo que tenha se submetido ao fatigoso trabalho de análise de sonhos com a competente assistência de um especialista (...) não veja seu horizonte se alargar e enriquecer" (JUNG, 2012a § 549).

Referências
JUNG, C. G. O livro vermelho: Liber Novus. 1. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
JUNG, C. G. Da essência dos sonhos. In: A natureza da psique. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a. p. 235-253.
JUNG, C. G. A aplicação prática da análise dos sonhos. In: Ab-reação, análise dos sonhos e transferência (OC 16/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012b. p. § 294-352.
JUNG, C. G.; JAFÉ, A. Memórias, sonhos e reflexões. 11. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
MCGUIRRE, W.; HULL, R. F. C. C.G.Jung: entrevistas e encontros. São Paulo: Cultrix, 1982.
Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista, Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com

Como citar este artigo
MARTINEZ, Monica. Sonhos projetivos: uma ponte para o futuro. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=425&ref=sonhos-projetivos-uma-ponte-para-o-futuro#conteudo>. Acesso em: 6 jun. 2019.

sexta-feira, 29 de março de 2019

O filho do pastor: narrativas biográficas, relação pai-filho e o processo de individuação

A mãe e o pai de C. G. Jung
Desde meu doutorado, tenho pesquisado as histórias de vida como método. Entender a proposta do psiquiatra Carl Gustav Jung (1875-1961) neste contexto foi o principal motivo que me levou a me aprofundar em Psicologia Junguiana, na qual concluí a especialização em 2014 no Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep).

Na época da conclusão do curso, ganhei de natal o famoso livro vermelho de Jung (JUNG, 2010). Confesso que na época o folheei, encantada, mas não me senti apta a digeri-lo comme il faut.  Parecia-me que, de Jung, eu ainda não havia compreendido o revealing remark, a observação reveladora como o maior de todos os narradores da The New Yorker, Joseph Mitchell (1908-1996) postulava(MITCHELL, 2003). Não raro, Mitchell levava até três anos para escrever perfis de nova iorquinos para esta revista estadunidense que, desde 1925, se não lançou o perfil (profile) como gênero, reúne até hoje a nata deste gênero jornalístico literário (REMNICK, 2000, tradução nossa). Como disse o cineasta João Moreira Salles, "a ´observação reveladora´é aquela que surge absolutamente singular, dita provavelmente pela primeira vez, para surpresa e alegria do próprio falante. É uma palavra nova e inviolada, trazida à tona pela feliz empatia entre quem fala e quem escuta" (SALLES, 2003, 152).

O que estaria no âmago da vida e obra de Jung? Aliás, ele dizia que não tinha criado uma teoria ou sistema. "Freud tinha uma ´teoria; eu não tenho ´teoria´, mas descrevo fatos. Eu não teorizo sobre o surgimento das neuroses, mas descrevo o que existe nas neuroses; também não tenho uma teoria sobre os sonhos, apenas indico o método que uso e os possíveis resultados (JUNG, 2018, p. 17-18). Assim, em 1º. de julho de 2016, iniciei os atendimentos clínicos, a princípio recebendo em meu consultório os pacientes encaminhados pela Clínica Ijep (https://www.ijep.com.br/index.php?sec=pags&id=232) e, desde então, recebendo cada vez mais analisandas e analisandos.

Mesmo depois de tanto estudar a prática junguiana, e já apoiada pela experiência de meu consultório, eu ainda tinha a inquietação de compreender o que havia movido Jung a trilhar seu caminho. Em 2018, adquiri a trilogia das cartas de C. G. Jung. Comecei a ler o volume 1 meio sem interesse, mas na metade já estava encantada com a escrita informal e erudita de Jung, como ele conseguia abordar temas de grande complexidade de um jeito absolutamente simples, direto, criativo e fluente. Como os diários e as entrevistas em formato pingue-pongue, as cartas nos dão a ilusão de estar ouvindo diretamente o outro.
Na carta à pastora Dorothee Hoch, datada de 28 de maio de 1952, veio o insight. "A suposição de que sou vítima de um complexo pessoal pode ser levantada, quando se sabe que sou filho de pastor (...) É verdade que eu não gostava de teologia, porque ela colocava problemas para meu pai que ele não conseguia resolver e que eu considerava injustificados" (JUNG, 2018, p. 240). Em sua resposta, Jung refutou essa hipótese: "Mas eu tive um bom relacionamento pessoal com meu pai - portanto nenhum complexo do tipo comum" (JUNG, 2018, p. 240). Teria ele, contudo, por meio de seus experimentos e obra, vivido a vida não vivida de seu pai?

Se há algo que podemos dizer com segurança é que a perspectiva junguiana é ancorada no universo cristão. "A ética depende da decisão suprema de uma consciência cristã, e a própria consciência não depende da pessoa apenas, mas igualmente da contrapartida da pessoa, isto é, Deus" (JUNG, 2018, p. 24). Não por acaso, o fenômeno religioso e a representação das imagens de Deus ocupam um lugar central em suas reflexões e, por extensão, nas suas cartas, em particular a partir do lançamento de seu livro Aion, em 1951(JUNG, 2012a), e, sobretudo, Resposta a Jó, em 1952 (JUNG, 2012b). O interesse específico de Jung estava nas representações primordiais coletivas que estão na base das diversas formas de religião, que ele chama de imagens arquetípicas. 

Haveria na psique humana uma potencialidade que impulsiona o ser humano a procurar e a se relacionar com o transcendente, seja o nome que se dê para ele/ela, em sua miríade de imagens antropomórficas cujas representações vão mudando de acordo com o tempo, o espaço e a cultura. "O termo ´Deus´ (...) expressa uma imagem ou conceito verbal que sofreu muitas mudanças ao longo de sua história. Em tal caso não temos possibilidade alguma de mostrar, com a mínima parcela de certeza que seja - a não ser a da fé - se tais mudanças se referem apenas às imagens e aos conceitos, ou se atingem o próprio inefável" (JUNG, 2012, § 555). O foco de Jung, portanto, nunca foi de natureza teológica, mas psicológica. Em outras palavras, as máscaras da eternidade, símbolos que nunca serão conhecidos totalmente, como diz o mitólogo estadunidense Joseph Campbell (1904-1987), porque velam o indizível (CAMPBELL, 1992, 2008a, 2008b, 2010). 

Assim, teria a pastora Dorothee Hoch, em 1952, apontado a motivação que teria levado Jung a desenvolver sua obra, que culminaria em Resposta à Jó? Em seu livro de memórias, editado pela analista suíça Aniela Jafé (JUNG; JAFÉ, 1989), Jung conta que em 1887, aos 12 anos, teria tido uma experiência numinosa e começado a sentir dúvidas em tudo o que seu pai dizia. "Suas palavras eram insípidas e vazias, tal como uma história contada por alguém que nela não crê, ou que só a conhece por ouvir dizer. Queria ajudá-lo, mas não sabia como. Uma espécie de pudor impedia que lhe contasse minha própria experiência, ou me imiscuísse em suas preocupações pessoais" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50).

Mais tarde, ao redor dos 18 anos, Jung narra que teria tentado por várias vezes conversar com seu pai sobre o assunto, "sempre com a secreta esperança de fazê-lo sentir algo da graça maravilhosamente eficaz e ajudá-lo em seus conflitos de consciência" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50). Ele continua: "Infelizmente nossas discussões jamais chegavam a uma solução satisfatória. Elas o irritavam e entristeciam. ‘Pois bem - costumava dizer - você só quer pensar. Mas não é isso que importa; o importante é crer. ‘E eu pensava: não, é preciso experimentar e saber; e acrescentava: ´Dê-me essa fé. Ele se erguia e ao se afastar encolhia os ombros, resignado" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 50).
Teria Jung, por meio de sua prática, tentado dar uma resposta à inquietação não integrada pelo seu pai, um pastor protestante que paradoxalmente não tinha fé para compartilhar, pregando fazer o que ele mesmo não fazia?

A resposta ao pai talvez esteja expressa na memorável entrevista que Jung concedeu em sua casa em Zurique ao jornalista britânico John Freeman (1915-2014), em 1959. Freeman conduzia uma série chamada Face to Face para a BBC 4. Um ano e meio antes de falecer, ao ser questionado por Freeman se acreditava em Deus, Jung declarou "I don´t need to believe. I know" (FREEMAN, 1959). Em tradução livre: "Eu não preciso acreditar. Eu sei." Transcender o ego e se render ao self, essa contrapartida do indivíduo que é uma das premissas da análise junguiana, é a prova suprema, por assim dizer, do processo de individuação. Ou como Jung disse, com outras palavras, no terceiro volume das cartas em resposta a um primeiro anista da Northwestern University sobre a "vontade de Deus": "É o fator que decide em última instância quando tudo está dito e feito. É essencialmente algo que não podemos conhecer de antemão. Só o conhecemos após o fato". (JUNG, 2018, p. 25). A própria noção de self nasce, em alguma medida, dessa representação divina, a Imago Dei: uma "esfera infinita, cujo centro está em toda parte, e a circunferência em parte nenhuma" (JUNG, 2018b, p. 16).

Jung diz na primeira linha de suas memórias, "Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 19). Se o que o movia era viver a vida não vivida do pai, justificando por meio da experiência e do saber que não era preciso fé para compreender o mistério supremo da vida, parece por esta afirmação que ele o conseguiu, valendo-se da gnose e do empirismo científico, permitiu que o numinoso, que é simultaneamente tremendo, fascinante e misterioso, estivesse presente constantemente no final da sua existência.

Para mim, a questão não é saber se esse insight que me tomou é verdadeiro do ponto de vista factual ou não. Como Jung também disse na abertura de suas memórias, "essa é aminha aventura, a minha verdade" (JUNG; JAFÉ, 1989, p. 19). Do ponto de vista simbólico, essa hipótese fez sentido e me ajudou a entender melhor o cerne da busca de minha representação de Jung. Agora, finalmente, posso me aventurar no sagrado livro vermelho. Minha leitura programada para 2019 será o Liber Novus.

Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista e escritora. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com

Referências