sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Ansiedade na relação mãe-filha: o mito de Deméter e Core-Perséfone

         


        


        Certa vez eu estava no vestiário da academia de ginástica depois da aula. Uma mãe, de cerca de uns 45 anos, compartilhava com as amigas uma grande dor. A filha havia passado no vestibular da maior universidade pública brasileira. Na hora de fazer a matrícula, ela havia dito para a mãe-torista: “Mãe, eu te amo, mas daqui em frente eu vou sozinha”. E saltou do carro. Lá foi a mocinha de 18 anos, lépida e faceira, tomando as rédeas de seu destino.

         Lembro de ter tido presença de espírito de congratular a mãe estarrecida. “Parabéns, você fez um grande trabalho como mãe. O contrário – se sua filha estivesse colada em você – é que seria um problema”. Talvez tenha suavizado um pouco a dor, não sei dizer. A gente nunca sabe. Tempos depois, ao pensar no fato, me veio de estalo o mito de Deméter e Perséfone, que simboliza bem a ansiedade da separação de mães e filhas.

         A raiz do que sabemos deste mito pode ser encontrada no hino à Demeter, atribuído a Homero, que teria vivido no século VII a.C. (HOMERO, 2009). A narrativa começa no Monte Olimpo. Como sintetiza bem Junito Brandão, Deméter era a “deusa maternal da Terra” (BRANDÃO, 2014, p. 165). A sociedade grega era patriarcal e escravagista. Neste contexto, o regente do Olimpo, Zeus, era casado com a ciumenta Hera, mas teve tantos casos extraconjugais que as diversas genealogias gregas não dão conta de organizar. Um deles foi com sua irmã, Deméter, que teve com ele sua única filha, Core – que quer dizer jovem ou virgem.

         Deméter literalmente blindou a filha numa eterna primavera, longe de homens e problemas. Se Hera personifica o arquétipo da esposa, Deméter é o da mãe. Certo dia, a jovem estava colhendo flores quando se aproximou de um abismo para colher um narciso. O que Core não sabia é que sua beleza havia despertado o interesse de um tio, Hades, o senhor do submundo. A jovem foi, por assim dizer, tragada para o seio da terra.

         Sua mãe ficou desconsolada. Que mãe não ficaria? Por nove dias e noites, segundo o relato de Homero, vagou em vão ansiando por recuperar a filha. A deusa Hécate se apiedou e foi ter com ela, dizendo que nada havia visto. Já o deus solar Hélio, que tudo vê, relatou quem tinha sido responsável pelo rapto.

         As queixas de Deméter não moveram uma pena. Desconsolada, decidiu não voltar ao Olimpo, mas também deixou de cuidar da Terra. Como uma anciã, Doso, foi parar em Elêusis, cidade que fica a uns 20 km de Atenas. Lá foi acolhida por uma poderosa família local. Mas uma deusa não perde a majestade e tempos depois o casal percebeu que não se tratava de uma mortal comum (o fato de a terem pego tentando “imortalizar” o filho caçula no fogo fez com que ficassem com a pulga atrás da orelha). Deméter acaba pedindo que lhe construam um belo templo, no qual os gregos realizavam anualmente um festival que celebrava os mistérios eleusinos – um ritual de iniciação que celebrava o mito da mãe e filha. 

         Sem sua deusa, a terra fica devastada O clamor dos seres humanos e dos deuses amolece Zeus, que negocia com o irmão e pede a Hermes – o mensageiro dos mundos – que fosse ao submundo resgatar Perséfone. Notem que a jovem esposa do deus Hades agora recebe um novo nome, que personifica sua nova persona ou máscara social.

         Hades aceita o trato, mas não é bobo. Dá uma romã para a jovem esposa comer antes de partir. Há a tradição de que aquele que comer algo nos mundos subterrâneos não poderá mais sair dele.  Homero não diz isto à esposa, claro, mas gosto de pensar que Perséfone sabia muito bem o que aconteceria se provasse daquela fruta, símbolo da fertilidade.

          O resultado é que todos têm de ceder um pouco, isto é, suas personas tem de se ajustar à nova realidade. Deméter fica com a filha por nove meses. Hades fica com a esposa por três meses.  Contudo, gosto de pensar que Perséfone fica consigo mesmo por 12 meses do ano. Para mim, foi ela quem mais ganhou com a história, pois que a jornada permitiu à jovem perder a inocência da inconsciência em troca da descoberta sobre si mesma.

         Meses depois, estava eu no consultório atendendo uma analisanda grávida. Uma das dores da jovem era como ensinaria a filha a se relacionar com os homens. Internamente, eu sorri. O novo papel social que a gestante estava sendo convidada a assumir estava devidamente ativando arquétipos ligados a maternagem. Salve Deméter! Mas a ansiedade a estava levando longe demais. Naquele dia, eu a conduzi gentilmente de volta ao tempo presente e à consciência do seu corpo que se arredondava com suavidade. Por meio da conversa das tramas de tricôs e da vida.

Dra. Monica Martinez é especialista em Psicologia Junguiana pelo IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa -  E-mail: monicamartinezpsi@gmail.com. 


Referências

BRANDÃO, J. DE S. Dicionário Mítico-Etimológico. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.

HOMERO. Hino homérico II: a Demeter. São Paulo: Odysseus, 2009.


Para citar este artigo


MARTINEZ, Monica. Ansiedade na relação mãe-filha: o mito de Deméter e Core-Perséfone. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/artigos/show/ansiedade-na-relacao-mae-e-filha-o-mito-de-demeter-e-core-persefone>. Acesso em: 18 set. 2020.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Afetos, complexos e símbolos


O Beijo, de Klimt

A afetividade – para C. G. Jung expressa por meio de sentimentos, sensibilidades, emoções – seria o fundamento da personalidade. Esses centros de energia afetiva estariam, como sóis, no centro de galáxias de energia psíquica conhecidas em psicologia junguiana como complexos.
Todos temos complexos, uma vez que eles seriam “manifestações normais da vida” (JUNG, 2012a, § 211). Aliás, em psicologia junguiana, o próprio eu é entendido como um deles. “O Complexo do Ego seria um entre os múltiplos – o Eu como um dos outros na psique em cada um” (SALVADOR, [s.d.]). Segundo Ajax Salvador, “Jung destaca que o complexo do Ego seria formado pela percepção geral do corpo, existência e pelos registros da memória” (SALVADOR, [s.d.]).
A batalha entre ego e complexo, obviamente, não é das mais fáceis. Até porque o ego tem interesse em manter a situação como está, uma vez que, de uma forma mais ou menos efetiva, está fazendo o indivíduo seguir pela vida. Mas com que qualidade? Quando recalcados ou cindidos, os complexos podem ser altamente prejudiciais a uma vida plena. Nos seus trabalhos iniciais, feito com os testes de associação, Jung já estabelecia a relação entre “complexo e neurose” (JUNG, 2012, § 1352), “cujo efeito perturbador faz com que as pessoas adoeçam” (JUNG, 2012, § 1353).
Como os complexos foram forjados pelas percepções que o indivíduo teve dos acontecimentos, com as quais construiu sua realidade, é justamente por meio da narração de seu cotidiano, sonhos e memórias, bem como relatos de fantasias e imaginações, que é possível ressignificar estes eventos ao longo do processo analítico.
Assim, o complexo vai sendo despotencializado, isto é, conscientizado e elaborado ao longo das sessões. Como, à semelhança do corpo, a psique é entendida como um sistema autorregulatório, é por meio da compreensão destes conteúdos simbólicos que “os complexos tornam-se visíveis” (KAST, 2019, p. 23).
Esse processo libera a energia psíquica do analisando. É como se houvesse um nó de energia estagnada ou congelada que, ao ser reintegrado, volte a seguir seu curso. Não é que o complexo suma como num passe de mágica, evidentemente, mas o fluxo interrompido do desenvolvimento pode ser retomado, em alguma medida, o que permite que a pessoa apresente um ajuste mais satisfatório em seus relacionamentos com outros e com o meio em que vive. Em outras palavras, a vida volta a fluir. Por isso que Jung dizia que os complexos, “com efeito, constituem as verdadeiras unidades vivas da psique inconsciente, cuja existência e constituição só podemos deduzir através deles” (JUNG, 2012a, § 210).
O problema é que estes núcleos possuem um grau alto de autonomia em relação à consciência. O que levou Nise da Silveira a dizer que a “verdade é que não somos nós que temos o complexo, o complexo é que nos tem, que nos possui” (SILVEIRA, 2007, p. 30). “O complexo obriga-nos a perder a ilusão de que somos senhores absolutos em nossa própria casa” (SILVEIRA, 2007, p. 30). Os complexos estariam, portanto, por trás de lapsos e gafes, situações contraditórias e perturbações da memória.
Esta interferência é comum inclusive na relação analítica entre analisando e analista. Não por acaso, a análise teria justamente com alvo principal possibilitar que o ego, o centro da consciência, se estruture e, assim, administre os diferentes tipos de complexo (materno, paterno, de poder, de inferioridade, entre outros).
Waldemar Magaldi lembra que dentre “todas as possibilidades de transferência, a do complexo materno negativo é a mais perversa, porque mantem o analisando na condição de puer, a eterna criança ou adolescente que não quer contrariar a mãe” (MAGALDI, [s.d.]).
Para ele, o analisando precisa compreender que o processo analítico é mais importante do que seu embate inconsciente com o analista, e que ambos precisam se unir para enfrentar o complexo dominante. Caso contrário, “mais uma vez acontecerá a frustação e, como no mito de Sísifo, [o analisando] partirá para um novo recomeço, por um novo caminho, mas com a mesma pedra, que é o complexo materno negativo e o dinamismo do puer constelado na personalidade” (MAGALDI, [s.d.]).
O que há no núcleo do simbolismo de um complexo? Em geral, uma imagem arquetípica. Mas isto fica para o próximo artigo.

Referências
JUNG, C. G. A natureza da psique (OC 8/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a.
JUNG, C. G. Estudos experimentais. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012b.
KAST, V. Jung e a Psicologia Profunda. São Paulo: Cultrix, 2019.
MAGALDI, W. Complexo materno, relação transferencial e o puer/puela aeternus. Disponível em: <https://www.ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=243&ref=complexo-materno-relacao-transferencial-e-o-puer/puela-aeternus#conteudo>. Acesso em: 5 ago. 2019.
SALVADOR, A. P. Complexo do eu sujeito como posiçao de indeterminação. Disponível em: <https://www.ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=238&ref=complexo-do-eu---sujeito-como-posicao-de-indeterminacao#conteudo>. Acesso em: 5 ago. 2019.
SILVEIRA, N. DA. Jung: vida e obra. 21. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
Monica Martinez é especialista em Psicologia Junguiana pelo IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa -  E-mail: analisejunguianasp@gmail.com

Para citar este artigo

MARTINEZ, Monica. Afetos, complexos e símbolos. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/artigos/show/afetos-complexos-e-simbolos>. Acesso em: 20 abr. 2020.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

A estrutura narrativa dos sonhos


Estudo de Joseph Noel Paton: Sonho de uma noite de verão
O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) chegou a analisar cerca de dois mil sonhos por ano. Baseado nesta experiência empírica, ele sugeriu que seria possível reconhecer um certo padrão estrutural nas narrativas oníricas.
Não por acaso, a estrutura dos sonhos observada por Jung apresentaria semelhança com a das estruturas narrativas clássicas, como a do drama (JUNG, 2012a § 561). Como se sabe, no campo da Comunicação e das Letras, há uma sólida tradição nos estudos sobre a forma das narrativas produzidas no estado de vigília, sendo que o primeiro relato conhecido foi proposto bem antes de Jung por outro estudioso europeu, o filósofo grego Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.), mais precisamente em A Poética (ARISTÓTELES, 2008).
Haveriam paralelos entre as narrativas oníricas observadas por Jung e as demais narrativas, como a que observamos hoje nos ecossistemas midiáticos? A princípio, não parece improvável propor a hipótese positiva. Mas, caso ela se confirmasse, quais seriam as consonâncias e as divergências das narrativas produzidas pelos seres  humano no estado de vigília e no de sono?
No campo da teoria literária, um dos estudos mais clássicos de esquema narrativo foi proposto na década de 1970 pelo linguista búlgaro naturalizado Tzvetan Todorov 1939-2017) (TODOROV, 1970).
Para fins comparativos, empregaremos um modelo simplificado de análise da estrutura narrativa utilizado pelos críticos literários brasileiros Benjamin Abdala Júnior (ABDALA JUNIOR, 1995) (1995) e Cândida Vilares Gancho (GANCHO, 2006), que denomina como seis os principais elementos da narrativa: 1) enredo; 2) personagens; 3) tempo; 4) espaço; 5) narrador.
Ressaltamos que nas narrativas que ocorrem no estado de vigília, como as jornalístico-literárias, “tais elementos estão presentes em todas as formas de narrativa, independentemente, de serem ficcionais, históricas ou jornalísticas” (MARTINEZ et al., 2017). Mas estariam esses cinco elementos também presentes nos sonhos? Para investigar esta hipótese, vamos relacioná-los aqui à perspectiva junguiana, que sugere quatro fases: 1) indicação de lugar; 2) desenvolvimento da ação; 3) culminação ou peripécia; 4)  lise, solução ou o resultado produzido pelo sonho (JUNG, 2012b § 561-562). Este estudo não leva em consideração a estrutura mítica dos sonhos em sua relação com a construção de histórias de vida em jornalismo, que foi objeto de minha tese de doutorado (MARTINEZ, 2008), que será investigado posteriormente.

  1. Exposição: indicação de lugar, personagens e situação inicial (espaço / personagens / tempo)
Usamos para fins comparativos das narrativas oníricas relatos do próprio Jung e, das clássicas, um trecho da obra de Todorov extraído do Decameron do poeta italiano Giovanni Boccacio (1313-1375):
Um monge leva uma jovem a sua cela e faz amor com ela. O abade fica sabendo e se prepara para puni-lo severamente. Mas o monge percebe que o abade descobriu e prepara-lhe uma armadilha, deixando sua cela. O abade entra e sucumbe aos encantos da moça, enquanto o monge o observa, por sua vez. Quando finalmente o abade pretende punir o monge, este lhe faz notar que ele acaba de cometer o mesmo pecado. Resultado: o monge não é punido (I, 4). Isabetta, jovem monja, está com seu amante na cela. As outras freiras percebem, ficam com ciúmes dela e vão acordar a abadessa para que esta puna Isabetta. Mas a abadessa estava na cama com um abade; por isso tem de sair às pressas e põe os calções do abade na cabeça ao invés da coifa. Trazem Isabetta à igreja e a abadessa começa a fazer-lhe um sermão, quando Isabetta nota os calções em sua cabeça. Ela os aponta a todos; assim a punição é evitada (IX, 2) (TODOROV, 1970, p. 83).
A narrativa, como pode ser observada, principia pela indicação de local, no caso a cela do religioso. Jung observa esta mesma característica na análise dos sonhos:
O sonho começa, por exemplo, com uma indicação de lugar, como “Vejo-me numa rua; é uma avenida (1): ou “Acho-me num grande edifício que me lembra um hotel” (2) etc. (JUNG, 2012a § 561).
O espaço parece ser comum a ambas expressões narrativas, oníricas e no caso ficcional. No primeiro caso, literário, estamos falando do que o jornalista-escritor estadunidense Tom Wolfe chamaria, na década de 1970, de símbolo de status de vida (WOLFE, 2005; WOLFE; JOHNSON, 1973). Isto é, a simples descrição de que a narrativa principia numa cela de um monge celibatário, ainda que econômica, permite ao leitor visualizar, por meio de imagens endógenas (BELTING, 2007), um quarto parcamente mobiliado.  Já no caso dos sonhos também estamos no campo simbólico, mas não social e sim pessoal, no caso dos sonhos pequenos e médios, como Jung os define (JUNG, 2012, § 561).
O que significa que, tanto no contexto junguiano quanto no das narrativas tradicionais, as palavras usadas não têm apenas um único sentido, ou que este sentido não é comum a todos. No caso específico do relato de um sonho, estes significados são latentes, uma vez que ainda não foram assimilados pelo consciente. É preciso, portanto, que o analista e o analisando descubram, em conjunto, o que aquele grande edifício, por exemplo, significa para aquele indivíduo em particular, uma vez que o sonhador mesmo evocou que ele parece um hotel.
    1. Tempo
As indicações de lugar são frequentes em ambos casos, mas o mesmo não acontece nas indicações temporais. Estas ocorrem com frequência no caso das narrativas tradicionais, sendo uma condição sine qua non nos relatos jornalísticos, por exemplo. Já segundo Jung o mesmo não pode ser dito no caso dos sonhos, onde as indicações de tempo “são mais raras” (JUNG, 2012a § 561).
    1. Personagens/narrador
Como são feitas por seres humanos para seres humanos, as narrativas, sejam de qualquer natureza, demandam personagens. Na narrativa medieval escrita por Boccaccio, por exemplo, há um casal que desencadeia a história com seu amor proibido. Após a indicação de lugar, o mesmo costuma ocorrer no universo dos sonhos:
Segue-se, muitas vezes, uma indicação referente aos personagens da ação: por exemplo: “Saio a passear com meu amigo X em um parque público. Numa bifurcação me encontro, de repente, com a senhora F” (3); ou: Estou sentado num compartimento da estrada de ferro em companhia de meu pai e minha mãe”(4); ou: “Estou de uniforme militar, cercado por numerosos camaradas de serviço (5); etc. (JUNG, 2012a § 561)
Aqui se evidencia uma das grandes diferenças do método de ampliação de sonhos junguiano em relação aos estudos jornalístico-literários das narrativas. No caso da análise junguiana, há uma distinção entre o objeto e o sujeito. Isso significa que, ainda que o sonhador conheça os personagens, vamos supor a senhora F, trata-se não dela propriamente dita, mas de uma representação que o sonhador está projetando sobre ela, como se fosse um suporte ou uma tela.
Portanto, no caso do sonho, a senhora F não representa ela mesma, mas a representação imagética que o sonhador dela faz. Para compreendê-la, como no caso do grande edifício que lembra ao sonhador um hotel, é preciso entender que a imagem guarda apenas uma relação exterior com o objeto. É preciso também neste caso que o analista mergulhe, com o sonhador, no que Jung chama de reconstituição do contexto. Que consiste, segundo ele, em “procurar ver, através das associações do sonhador, para cada detalhe mais saliente, em que significações e com que nuança ele lhe aparece” (JUNG, 2012 § 542).
Neste âmbito, a análise literária e a análise dos sonhos guardam alguma relação. “Meu modo de proceder não difere daquele usado para decifrar um texto difícil de ler (JUNG, 2012 § 542). Ainda assim, não há garantia de se familiarizar totalmente com o conteúdo. “O resultado obtido com esse método nem sempre é um texto imediatamente compreensível, mas muitas vezes não passa de uma primeira e preciosa indicação que comporta inúmeras possibilidades” (JUNG, 2012 § 542).
Há outro ponto essencial para se compreender a linguagem dos sonhos no quesito personagens. “Toda a elaboração onírica é essencialmente subjetiva e o sonhador funciona, ao mesmo tempo, como cena, ator, ponto, contrarregra, autor, público e crítico” (JUNG, 2012 § 510). Em outras palavras, “todas as figuras do sonho [são] (...) traços personificados da personalidade do sonhador (JUNG, 2012 § 510). Todas são representações geradas pelo inconsciente do que, em análise discursiva literária, seriam designados por narrador/autor.
  1. Desenvolvimento da ação (enredo)
A seguir temos o que Aristóteles chamaria de intriga (ARISTÓTELES, 2008), a sequência de ações que dá início ao enredo propriamente dito. Ao saber o que está acontecendo, o abade se prepara para punir o monge quando... Um jovem monja está com seu amante na cela, as freiras com ciúme a delatam à abadessa que....
Jung chama esta segunda fase da estrutura onírica de desenvolvimento da ação.
Vejo-me na rua; é uma avenida. Ao longe aparece um automóvel que se aproxima rapidamente. Sua maneira de movimentar-se é estranhamente insegura, e eu penso que o motorista deve estar embriagado” (1). Ou “A Sra. F. parece muito excitada e quer me sussurrar rapidamente qualquer coisa que meu amigo não pode ouvir”(3). A situação se complica de uma forma ou de outra, e se estabelece uma certa tensão, porque não se sabe o que vai acontecer (JUNG, 2012b § 562).
Na fase a seguir, o psiquiatra suíço recuperará um termo aristotélico relativo às narrativas, peripécia, que tem a função de alterar o curso dos acontecimentos em geral de maneira inesperada.
  1. Culminação ou peripécia
Nesta fase proposta por Jung, acontece algo de decisivo que altera radicalmente a situação. Um exemplo: “De repente sou eu que estou no carro e aparentemente sou eu mesmo o motorista embrigado” (JUNG, 2012a § 563). Nesse caso em particular, a linguagem onírica faz uma relação direta com a figura do narrador. “Mas não estou embriagado. Estou apenas estranhamente inseguro e como que sem a direção do carro. Não consigo mais controlar o carro e vou com ele de encontro a um muro com grande barulho (1)” (JUNG, 2012a § 563). Outro exemplo: “De repente a Sra. F. fica lívida como um cadáver e cai desmaiada no chão (3)” (JUNG, 2012a § 563).
Se fôssemos comparar este excerto com o trecho extraído de Boccaccio, teríamos: ao saber da aventura amorosa do monge dentro de sua abadia,   o abade se prepara para puni-lo, mas também cai em tentação com a jovem deixada sozinha na cama.  Com ciúmes da jovem monja, as freiras a denunciam para a abadessa, mas ela estava na cama com um abade e, na pressa de se vestir, num ato falho como diria o psicanalista alemão Sigmund Freud (1856-1939),  coloca na cabeça o calção dele em vez da coifa, isto é, da sua touca.
  1. Lise, solução ou resultado
No caso da narrativa literária, o monge mostra ao abade que ele cometeu o mesmo pecado. Já a  abadessa começa a fazer em seu púlpito um sermão para a monja, que aponta o calção do abade na cabeça dela na frente de todos. Em ambos os casos, a punição é evitada (IX, 2) (TODOROV, 1970, p. 83).
E no caso dos sonhos? Jung diz que nem todos apresentam esta quarta fase, mas oferece alguns exemplos.
“Observo que a parte dianteira do carro ficou toda amassada. É um carro alheio, que eu desconheço. Eu próprio nào estou ferido. Reflito com certa preocupação sobre minha responsabilidade” (1). Ou: “Pensamos que a Sra. F. está morta. Mas trata-se, evidentemente, de um desmaio passageiro. Meu amigo X exclama: “É preciso que eu vá buscar um médico” (3). A última fase mostra-nos a situação final que é, ao mesmo tempo, o resultado “procurado”. No sonho 1 é evidente que, depois de uma certa confusão de descontrole, surge uma nova consciência reflexa, ou, antes, deveria surgir, porque o sonho é compensador. No sonho 3 o resultado consiste na ideia de se aconselhar a assistência de uma terceira pessoa que seja competente. (JUNG, 2012ª § 564).
Como ficariam estes sonhos em relação aos seus sonhadores? 
O primeiro indivíduo (1) é um homem que perdeu um pouco a cabeça em circunstâncias difíceis e receava que acontecesse o pior. O segundo sujeito (3) estava em dúvida quanto se devia ou não recorrer ä ajuda da psicoterapia para a sua neurose. Naturalmente estas indicações não constituem ainda a interpretação so sonho; elas apenas esboçam a situação inicial. (JUNG, 2012ª § 565).
Jung ressalta que “essa divisão em quatro fases pode ser aplicada, praticamente sem dificuldade especial, à maior parte dos sonhos, uma confirmação de que o sonho em geral tem uma estrutura “dramática” (JUNG, 2012ª § 565).
A nosso ver, o resultado deste nosso estudo também sugere que há correlação dos estudos de narrativas produzidas e lidas no estado de vigília com as narrativas oníricas, revelando-se um campo fértil em que novas pesquisas podem ser desenvolvidas no futuro.
Referências
ABDALA JUNIOR, B. Introdução à análise da narrativa. São Paulo: Scipione, 1995.
ARISTÓTELES. Poética. 3. ed. Lisboa: Gulberkian, Fundação Calouste, 2008.
BELTING, H. Antropologia de las imagens. Madri: Katz, 2007.
GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2006.
JUNG, C. G. Da essência dos sonhos. In: A natureza da psique. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a. p. 235–253.
JUNG, C. G. A aplicação prática da análise dos sonhos. In: Ab-reação, análise dos sonhos e transferência (OC 16/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012b. p. § 294-352.
MARTINEZ, M. Jornada do Herói: estrutura narrativa mítica na construção de histórias em jornalismo. 1. ed. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008.
MARTINEZ, M. et al. Assessoria de imprensa, narrativas midiáticas e saúde: simbiose de fontes, jornalistas, leitores, personagens e afetos. Intexto, v. 38, n. jan-abr, p. 197–224, 2017.
TODOROV, T. As estruturas narrativas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1970.
WOLFE, T. Radical chique e o novo jornalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
WOLFE, T.; JOHNSON, E. W. The new journalism. New York: Harper & Row, 1973.

Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa

Como citar este artigo
MARTINEZ, Monica. A estrutura narrativa dos sonhos. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/artigos/show/a-estrutura-narrativa-dos-sonhos. Acesso em 17 abr. 2020. 

segunda-feira, 23 de março de 2020

A ciência e a psicologia junguiana


Cena do filme "Um método perigoso", onde Jung trata a paciente Sabina Spielrein

Por Monica Martinez

Haveria resistência das chamadas ciências duras em aceitar abordagens psicológicas, incluindo a de C. G. Jung, como científicas. Na verdade, não é somente o método proposto pelo psiquiatra suíço que sofreu/sofre essa reação da comunidade científica. Basta lembrarmos que Sigmund Freud também enfrentou essa oposição antes que suas ideias encontrassem respaldo no mundo acadêmico.
Contudo, o que talvez poucos saibam é que, desde o início, Jung encontrou reconhecimento acadêmico devido justamente à pesquisa que realizava. No início do século XX, ele desenvolvia com o psiquiatra suíço Franz Riklin (1878-1938) experimentos com o teste de associação no hospital psiquiátrico Burghölzli, em Zurique, Suíça (KAST, 2019, p. 9). Os estudos eram inspirados nas pesquisas do criador da associação livre, Sir Francis Galton (1822-1911).
Em seu livro Jung, Vida e Obra, a psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1905-1999) registra o momento histórico em que o hospital Burghölzli fervilhava de vida e entusiasmo com as descobertas que levariam ao desenvolvimento da psiquiatria interpretativa (em oposição à descritiva). “(...) todos queriam por à prova as ideias recém-lançadas por Freud, buscando verificar se, de fato, era possível descobrir elos causais para fenômenos tão díspares como lapsos, sonhos, sintomas neuróticos e delírios dos grandes loucos” (SILVEIRA, 2007, p. 29).
Um dos casos mais citados deste período era de uma paciente de Jung de 32 anos, casada, mãe de dois filhos:
Depois da morte de sua filha mais velha, de 4 anos, ela adoeceu gravemente. A experiência de associações revelou, pelas reações a certas palavras-indutoras, que algo de muito sério, de muito carregado de emoção, que o ego não tinha forças para incorporar, estava por trás daquela condição patológica. Jung vislumbrou a tragédia oculta e isso abriu caminho para que a confissão fosse feita: quando solteira ela havia amado um rapaz rico, de situação social superior à sua e que parecia não lhe dar nenhuma atenção. Casou-se com outro e teve dois filhos. Recentemente soubera que aquele rapaz também a havia amado e sofrera quando ela se casou. Isso a perturbou, absorveu seus pensamentos. Aconteceu então que, dando banho na filha, a menina chupou água da esponja embebida. O menino mais novo aproximou-se e também bebeu água da banheira onde se banhava a irmã. A água não era potável. A menina morreu de febre tifoide. Depois que Jung ajudou-a a tomar consciência de seu desejo inconsciente e a libertar-se das crianças para ir ao encontro do antigo amado, a doente curou-se e dentro de pouco tempo deixou o hospital (SILVEIRA, 2007, p. 28).
Ainda hoje o teste de associação é bastante simples: diz-se uma série de palavras ao qual o participante reage com o primeiro termo que lhe vier à mente, e depois é feita a repetição da série. Por exemplo: o condutor do experimento diz manga e a pessoa pensa em, digamos, sorvete. Sabe-se que, quanto mais cansados os participantes estiverem, menos o nível de instrução vai impactar neste retorno.
O que chamou a atenção de Jung e Riklin, contudo, foi a variação no tempo de reação, isto é, associações que levavam um longo tempo de reação, bem como outras que não eram lembradas no teste de reprodução – a princípio interpretadas como erros. Influenciados pela teoria do recalque freudiana, eles ficaram curiosos com o que podia estar por trás desta demora na resposta.
   A este lapso de tempo eles chamaram de “complexo de tonalidade afetiva” e, mais tarde, simplesmente de complexo. “(...) descobrimos que isso acontecia quando uma palavra-estímulo se referia a um assunto pessoal que (...) tinha certo caráter penoso” (JUNG, 2012, § 1350). E completa: “Muitas vezes a relação não era clara à primeira vista, mas tinha um caráter mais ‘simbólico’, eram ‘alusões’” (JUNG, 2012, § 1350).
Este termo ou conjunto de ideias, segundo ele, estavam unidos a uma carga emocional. “Com experiência e prática é possível identificar com facilidade as palavras-estímulo que vêm acompanhadas de distúrbios especiais, combinar seu significado e, então, deduzir os assuntos íntimos da pessoa experimental” (JUNG, 2012, § 1350).
Jung percebeu o potencial de estudar a relação entre complexos e neuroses, que podem levar ao adoecimento. Segundo ele, o complexo intervém na intenção de a pessoa responder rápida e corretamente ao teste, o que demonstra que “o complexo se comporta de forma autônoma em relação às intenções do indivíduo” (JUNG, 2012, § 1352).
Para o psiquiatra suíço, a neurose levaria eventualmente a uma adaptação ao meio ambiente. Já nos casos mais severos, psicóticos, os complexos se fixariam de tal forma que poderiam levar a uma paralisação da personalidade como um todo  (JUNG, 2012, § 1354).
Mesmo nestes casos, contudo, ele entendia que muitos pacientes continuariam com intensa vida interior, rica em fantasias, por meio da qual os complexos poderiam ser trabalhados. “Ali está de certa forma a fábrica onde são produzidas as delusões, alucinações etc. a partir de conexões bastante engenhosas” (JUNG, 2012, § 1354).
Ao reconhecer o valor terapêutico da abordagem  em seu trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, Nise da Silveira (1905-1999) se tornou uma voz importante na psiquiatria brasileira que se ergueu contra as técnicas agressivas usadas nos pacientes de então, como o eletrochoque e a lobotomia (SILVEIRA, 2015).
Com o tempo, Jung ganhou tal experiência com o teste de associação que passou a não precisar mais dele para perceber hesitações ou perturbações na fala que sugerissem um complexo.
Por isso, estes testes não são mais utilizados no dia a dia pelos analistas da escola junguiana. Que, contudo, continuam de olhos bem abertos às evidências de possíveis complexos sinalizados por meio dos lapsos, gafes, perturbações da memória e sonhos, uma vez que estes podem revelar sintomas neuróticos. O que significa dizer que na base do método junguiano há, sim, até hoje, uma abordagem empírica e, portanto, científica.
Contudo, a ciência de Jung vai além da dimensão redutiva causal, pois inclui as potencialidades prospectivas sintéticas. Isso deixa a academia tradicional, baseada em evidências, mais refratária à obra junguiana. Afinal, quando vamos na direção da busca de sentido e significado para os fenômenos, inevitavelmente, iremos nos deparar com os mistérios. E estes são inexplicáveis, indefiníveis e plurais como os símbolos.

Referências
JUNG, C. G. Estudos experimentais. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
KAST, V. Jung e a Psicologia Profunda. São Paulo: Cultrix, 2019.
SILVEIRA, N. DA. Jung: vida e obra. 21. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
SILVEIRA, N. DA. Imagens do inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.


Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo, e na Granja Viana, em Cotia. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com.

Como citar este artigo
MARTINEZ, Monica. A ciência e a psicologia junguiana. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/artigos/show/a-ciencia-e-a-psicologia-junguiana>. Acesso em: 12 mar 2020.