sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Por mais diálogo entre as áreas de Psicologia e Comunicação


Quais são os processos de comunicação que ocorrem durante uma sessão de terapia? E quando um jornalista faz uma entrevista, seja as breves ou, principalmente, projetos de longo prazo que demandam anos de interação?

O modo como esse fenômeno será interpretado depende muito do ponto de vista da área onde o observador está situado.

Do ponto de vista etimológico, a palavra Comunicação advém do latim, "communicationem", que desde o século XV significa "ação de tornar comum". Sua raiz é o adjetivo communis, comum, que quer dizer "pertencer a todos ou a muitos". E o verbo é communicare, comunicar, que significa "tornar comum, fazer saber".

Ao longo do tempo, contudo, sobretudo com o desenvolvimento dos meios de comunicação, a palavra foi incorporando o sentido de transmitir, passar algo de A para B, como em tese ocorre com o envio de uma carta ou quando assistimos a um programa de televisão.

Após a Segunda Guerra Mundial, foram comuns os estudos que tentavam mapear se e como seria possível persuadir os indivíduos para ficarem mais receptivos às mensagens publicitárias.

Atualmente os teóricos em Comunicação defendem que estas teorias que envolvem a noção de manipulação são obsoletas, pois partem do princípio de que o ser humano é totalmente passivo. Sabe-se hoje que a mídia é uma das esferas de influência, como a família e as diversas comunidades que as pessoas pertencem, como a laboral e a religiosa.

Sabe-se, também, que as classificações tradicionais entre comunicação interpessoal, organizacional e de massa estão em intenso processo de convergência desde o final dos anos 1990, com a expansão da Internet.

Vivemos uma época em que a mídia social e os grandes meios de transmissão se conectam de uma forma sem precedentes, de maneira cada vez mais simples e intuitiva. Basta um clique no smartphone ao postar algo no Facebook e um amigo que trabalhe num jornal pode achar interessante e o post virar uma pauta midiática. E vice-versa.

Contudo, os estudos da área de Comunicação ainda privilegiam a análise de processos que ocorrem por meio de aparatos midiáticos. Um exemplo seria o que ocorre na recepção de um programa de uma emissora de televisão.

Mesmo nos processos comunicacionais que envolvem o ser humano, o aspecto psicológico é pouco compreendido, porque pouco estudado ou visto no viés de abordagens psicológicas que estão mais preocupadas com a superfície dos fenômenos.

Uma abordagem jornalística clássica, investigativa, em geral ainda está presa a uma visão predominantemente positivista, moderna, explicativa, mecanicista, cartesiana. O jornalista, de forma legítima, busca "a verdade".

Outras áreas do conhecimento, como a História Oral e a Psicologia, compreendem que essa noção de verdade é subjetiva. Muitos historiadores orais trabalham com o conceito de ucronia, isto é, que é uma verdade "possível" para dadas circunstâncias que o indivíduo pode ter achado intolerável, como um prisioneiro de um campo de concentração.

A noção de verdade psicológica, mais ampla, preconiza que se algo está trazendo um sofrimento psíquico é porque, para aquele ser, naquele dado momento, aquilo é real. É a partir desta base que será trabalhado, não como uma mentira.

Em uma entrevista jornalística, sobretudo nos processos de apuração de longa duração, entrevistado(a) e jornalista envolvidos sairão transformados em alguma medida. Porém esse processo não é feito nem estudado de forma consciente.

Um livro seminal de como este processo pode ter repercussões dramáticas para o jornalista é O Segredo de Joe Gould(Companhia das Letras). A obra foi escrita pelo escritor estadunidense Joseph Mitchell (1908-1996) para a revista The New Yorker numa época em que as apurações levavam até três anos.

Joe Gould (1889-1957) era um "sem teto" atípico. Nascido numa família aristocrática de Boston, nos Estados Unidos, estudou - como seu avô e pai - medicina em Harvard. Distúrbios psicológicos o levaram a não conseguir se inserir no meio social. Devido às suas relações sociais, ele se tornou um boêmio que alternava internações com a vida em albergues em Manhattan sustentada à base de "contribuições" de celebridades como o autor e. e. cummings.

Mitchell projetou-se de tal forma no carismático sem teto que "mentia" sobre ter escrito uma obra maior que a Bíblia que sofreu um bloqueio de escrita que durou de 1964 a 1996, ano de seu falecimento.

Mitchell também não havia "cumprido" a vontade paterna de cuidar da fazenda familiar, também se sentia um peixe fora d´água em Nova York (os perfis que trabalhava expressavam isso, com relatos de mulheres barbadas, coveiros e outros anônimos), também tinha na cabeça um grande romance que jamais chegou a colocar no papel.

Por 32 anos, diariamente, Mitchell ia para a redação. Os colegas de trabalho ouviam o tac-tac-tac da máquina de escrever ao longo do dia. E ele recebia o salário integralmente ao final do mês. Quando faleceu, os colegas correram revirar seu escritório, na esperança de achar uma produção fenomenal. Não encontraram sequer uma linha.

Num caso deste, o analista junguiano compreende que há interações de vários níveis que podem estar acontecendo entre ele e o(a) analisando além da comunicação consciente. Os egos do paciente e do analista podem estar em contato com os respectivos inconscientes. Os egos de ambos também podem afetar seus respectivos inconscientes.  E ambos podem estar sujeitos à influência do inconsciente de cada um.

Nesse caso, podemos supor que o inconsciente coletivo de Gould transbordou de tal forma para o inconsciente de Mitchell que este, já fragilizado, não deu conta da relação. Naufragou neste mar profundo e intenso.

Tanto a área de Comunicação como a de Psicologia já sabem de seus limites, e que não são capazes de explicar todos os fenômenos. Contudo, o diálogo entre especialistas de ambos os campos pode ser salutar para o avanço destas duas ciências no século XXI, notadamente no período tão complexo pelo qual transita nossa civilização.  

Monica Martinez, ítalo-brasileira, é especialista em Psicologia Junguiana pelo IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, jornalista, escritora, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pós-doutora pela Umesp. Realizou estágio pós-doutoral na Universidade do Texas em Austin. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. Contatos:analisejunguianasp@blogspot.com. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com

Para citar este artigo
MARTINEZ, Monica. Por mais diálogo entre as áreas de Psicologia e ComunicaçãoInstituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: http://ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=269&ref=por-mais-dialogo-entre-as-areas-de-psicologia-e-comunicacao#conteudo. Acesso em: 16 set. 2016.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Enfim, um feliz dia dos pais

A paciente X é filha do segredo, isto é, a mãe lhe contou, quando atingiu a maioridade, que seu pai era outro que não o marido dela.
Num caso deste, o analista junguiano possivelmente trabalhará conteúdos associados ao complexo paterno e, claro, materno, que levam a moça a "jogar" com o amor paterno do pai "adotivo" e a hesitar em assumir seu papel social, ingressando numa universidade.
Ora, uma das críticas às psicoterapias - e igualmente a alguns métodos em outras áreas do conhecimento, como a análise do discurso em Comunicação - seria a de não levar em consideração elementos sócio-históricos.
Vamos voltar ao caso. A garota está inserida no século XXI, na maior metrópole latino-americana, tendo sido criada numa família de classe média baixa, de condições humildes.
Se formos analisar o caso tomando em consideração o aspecto histórico, teríamos de lembrar que se trata de alguém imerso numa cultura patrilinear. O pai, no caso, assume o papel de provedor, uma vez que a mãe não exerce uma atividade remunerada fora do lar.
Historicamente, fazemos parte de uma nação ainda predominantemente machista, no qual a mulher ocupa uma posição pública considerada por muitos como "menor" do que o homem.
Neste contexto, o adultério feminino é considerado mais sério do que o masculino - ainda que, convenhamos, o próprio Jesus teria perdoado uma adúltera com o argumento de que todos têm suas falhas.
Se voltássemos no tempo das culturas celtas ou das míticas Amazonas, por exemplo, com sua gestão matrilinear, essa questão seria irrelevante e não causaria psicopatologias na moça.
Uma vez que, imersa numa cultura diferente, não só ela mas várias outras seriam fruto de uniões semelhantes porque o hábito social era o de as mulheres procurarem um parceiro quando desejavam ter prazer ou gestar um filho.
Em tese, aplicar o modelo matrilinear à análise da moça no século XXI, naturalmente, não resolveria a questão. Seria mais ou menos como tentar rodar um Windows 10 num antigo computador 486 - não há diálogo entre o hardware antigo e o software novo.
Por essa linha de raciocínio, um caminho possível seria conscientizar sobre as linhagens matrilineares, as patrilineares e a necessidade contemporânea de entender os gêneros numa perspectiva de relação, onde um não existe sem o outro, preferencialmente em equilíbrio.
Nesse caso, podemos dizer que o esclarecimento do contexto sócio-histórico seria benéfico. Contudo, não bastaria. Limitar-se aos índices e signos de uma sociedade em um dado tempo e espaço não é suficiente para compreendê-la.
É por isso que, para dar conta da complexidade contemporânea, só mesmo o símbolo poderia ajudar de uma forma mais integral na tentativa de compreensão do ser humano.
O que é símbolo? Trata-se de algo cujo significado transcende suas bordas, suas fronteiras. Dois troncos de uma árvore unidos em ângulos de 90 graus formam uma cruz. Mas o simbolismo da cruz pode ter leituras distintas em culturas diferentes.
A cruz celta, por exemplo, em seu hibridismo cultural, traz tanto a raiz cristã quanto o círculo, que nesta tradição simboliza o ciclo da vida.
A análise junguiana preconiza o processo de conscientização de conteúdos inconscientes pessoais, que emergem ao longo das sessões, a partir da perspectiva do paciente.  Já conteúdos simbólicos de caráter arquetípico, mais profundos, são ampliados com o auxílio do analista, que deve ter um bom repertório de variadas mitologias.
Sem isso, corre-se o risco de as sessões gravitarem apenas em torno do ego - o centro da consciência -, representado por queixas, diagnósticos de transtornos mentais e/ou fenômenos que impactam o indivíduo inserido na sociedade contemporânea. O que não atende a necessidade de compreender o norte que o self - entendido na psicologia junguiana como o centro e a totalidade psíquicas - deseja.
O self pode se manifestar de várias formas. Na psicologia junguiana, em geral se observam as sincronicidades, os sintomas e os sonhos trazidos espontaneamente ao consultório pelo paciente ou o resultado de "lições de casa" que envolvem expressões criativas, como pinturas.
A conclusão é a de que um analista com esta visão ampliada talvez pudesse ajudar a jovem a romper o ciclo de perceber-se como uma vítima, excluída socialmente e focada em suas psicopatologias.  
Ao despotencializar este complexo, ela poderia se sentir agradecida pelo pai "adotivo", que lhe deu as bases necessárias para que ela seja um ser humano integrado como indivíduo e como parte de uma família, capaz de contribuir socialmente e até ajudar outras pessoas.

Monica Martinez, ítalo-brasileira, é especialista em Psicologia Junguiana pelo IJEP, jornalista, escritora, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pós-doutora pela Umesp. Realizou estágio pós-doutoral na Universidade do Texas em Austin. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. Contatos: analisejunguianasp@blogspot.com. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com

Originalmente publicado no site do Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep) em 10 de agosto de 2016. Este e outros artigos estão disponíveis em: http://ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=264&ref=enfim-um-feliz-dia-dos-pais#conteudo.

MARTINEZ, Monica. Enfim, um feliz dia dos pais. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: http://ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=264&ref=enfim-um-feliz-dia-dos-pais#conteudo. Aceso em: 10 ago. 2016.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

O tornar-se si mesmo


            Jung chamou de individuação esse processo de o indivíduo tornar-se o Homo Totus (JUNG, 2012, §853), uno consigo mesmo − no qual o eu individual se relaciona com o arquétipo do Si-mesmo ou a Imago Dei, a imagem de Deus em nós ou onde somos semelhantes a Deus:

O conceito de individuação desempenha papel não pequeno em nossa psicologia. A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É, portanto, um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual. (JUNG, 2012, §853).

            Para o psicoterapeuta junguiano Paulo Ruby:

O desenvolvimento psicológico, dentro da visão junguiana, segue uma necessidade progressiva de diferenciação do ego que deriva de um centro chamado self (si mesmo), considerado o arquétipo central do inconsciente coletivo que coordena o desenvolvimento através de outros arquétipos. O self é o centro da personalidade, mas também a própria totalidade psíquica que abrange consciente e inconsciente − é o centro dessa totalidade, assim como o ego é centro da consciência. O self tem uma função teleológica conhecida como processo de individuação. Enquanto o ego tem uma atuação no mundo consciente, o self  tem uma atuação mais ampla dentro da experiência do ser humano através dos símbolos, que são imagens arquetípicas. Não nos relacionamos diretamente com os arquétipos, mas sim com suas representações imagéticas − produtos espontâneos que possuem um propósito e um fato curador (RUBY, 1998, p. 22-23).

Referências
JUNG, Carl Gustav.  Tipos psicológicos. 6. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2012. 614 p. (OC 6).

RUBY, Paulo. As faces do humano: estudos de tipologia junguiana e psicossomática. São Paulo: Oficina de Textos, 1998. 95p.