Cena do filme "Um método perigoso", onde Jung trata a paciente Sabina Spielrein
Por Monica Martinez
Haveria resistência das chamadas ciências duras em aceitar abordagens psicológicas, incluindo a de C. G. Jung, como científicas. Na verdade, não é somente o método proposto pelo psiquiatra suíço que sofreu/sofre essa reação da comunidade científica. Basta lembrarmos que Sigmund Freud também enfrentou essa oposição antes que suas ideias encontrassem respaldo no mundo acadêmico.
Contudo, o que talvez poucos saibam é que, desde o início, Jung encontrou reconhecimento acadêmico devido justamente à pesquisa que realizava. No início do século XX, ele desenvolvia com o psiquiatra suíço Franz Riklin (1878-1938) experimentos com o teste de associação no hospital psiquiátrico Burghölzli, em Zurique, Suíça (KAST, 2019, p. 9). Os estudos eram inspirados nas pesquisas do criador da associação livre, Sir Francis Galton (1822-1911).
Em seu livro Jung, Vida e Obra, a psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1905-1999) registra o momento histórico em que o hospital Burghölzli fervilhava de vida e entusiasmo com as descobertas que levariam ao desenvolvimento da psiquiatria interpretativa (em oposição à descritiva). “(...) todos queriam por à prova as ideias recém-lançadas por Freud, buscando verificar se, de fato, era possível descobrir elos causais para fenômenos tão díspares como lapsos, sonhos, sintomas neuróticos e delírios dos grandes loucos” (SILVEIRA, 2007, p. 29).
Um dos casos mais citados deste período era de uma paciente de Jung de 32 anos, casada, mãe de dois filhos:
Depois da morte de sua filha mais velha, de 4 anos, ela adoeceu gravemente. A experiência de associações revelou, pelas reações a certas palavras-indutoras, que algo de muito sério, de muito carregado de emoção, que o ego não tinha forças para incorporar, estava por trás daquela condição patológica. Jung vislumbrou a tragédia oculta e isso abriu caminho para que a confissão fosse feita: quando solteira ela havia amado um rapaz rico, de situação social superior à sua e que parecia não lhe dar nenhuma atenção. Casou-se com outro e teve dois filhos. Recentemente soubera que aquele rapaz também a havia amado e sofrera quando ela se casou. Isso a perturbou, absorveu seus pensamentos. Aconteceu então que, dando banho na filha, a menina chupou água da esponja embebida. O menino mais novo aproximou-se e também bebeu água da banheira onde se banhava a irmã. A água não era potável. A menina morreu de febre tifoide. Depois que Jung ajudou-a a tomar consciência de seu desejo inconsciente e a libertar-se das crianças para ir ao encontro do antigo amado, a doente curou-se e dentro de pouco tempo deixou o hospital (SILVEIRA, 2007, p. 28).
Ainda hoje o teste de associação é bastante simples: diz-se uma série de palavras ao qual o participante reage com o primeiro termo que lhe vier à mente, e depois é feita a repetição da série. Por exemplo: o condutor do experimento diz manga e a pessoa pensa em, digamos, sorvete. Sabe-se que, quanto mais cansados os participantes estiverem, menos o nível de instrução vai impactar neste retorno.
O que chamou a atenção de Jung e Riklin, contudo, foi a variação no tempo de reação, isto é, associações que levavam um longo tempo de reação, bem como outras que não eram lembradas no teste de reprodução – a princípio interpretadas como erros. Influenciados pela teoria do recalque freudiana, eles ficaram curiosos com o que podia estar por trás desta demora na resposta.
A este lapso de tempo eles chamaram de “complexo de tonalidade afetiva” e, mais tarde, simplesmente de complexo. “(...) descobrimos que isso acontecia quando uma palavra-estímulo se referia a um assunto pessoal que (...) tinha certo caráter penoso” (JUNG, 2012, § 1350). E completa: “Muitas vezes a relação não era clara à primeira vista, mas tinha um caráter mais ‘simbólico’, eram ‘alusões’” (JUNG, 2012, § 1350).
Este termo ou conjunto de ideias, segundo ele, estavam unidos a uma carga emocional. “Com experiência e prática é possível identificar com facilidade as palavras-estímulo que vêm acompanhadas de distúrbios especiais, combinar seu significado e, então, deduzir os assuntos íntimos da pessoa experimental” (JUNG, 2012, § 1350).
Jung percebeu o potencial de estudar a relação entre complexos e neuroses, que podem levar ao adoecimento. Segundo ele, o complexo intervém na intenção de a pessoa responder rápida e corretamente ao teste, o que demonstra que “o complexo se comporta de forma autônoma em relação às intenções do indivíduo” (JUNG, 2012, § 1352).
Para o psiquiatra suíço, a neurose levaria eventualmente a uma adaptação ao meio ambiente. Já nos casos mais severos, psicóticos, os complexos se fixariam de tal forma que poderiam levar a uma paralisação da personalidade como um todo (JUNG, 2012, § 1354).
Mesmo nestes casos, contudo, ele entendia que muitos pacientes continuariam com intensa vida interior, rica em fantasias, por meio da qual os complexos poderiam ser trabalhados. “Ali está de certa forma a fábrica onde são produzidas as delusões, alucinações etc. a partir de conexões bastante engenhosas” (JUNG, 2012, § 1354).
Ao reconhecer o valor terapêutico da abordagem em seu trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, Nise da Silveira (1905-1999) se tornou uma voz importante na psiquiatria brasileira que se ergueu contra as técnicas agressivas usadas nos pacientes de então, como o eletrochoque e a lobotomia (SILVEIRA, 2015).
Com o tempo, Jung ganhou tal experiência com o teste de associação que passou a não precisar mais dele para perceber hesitações ou perturbações na fala que sugerissem um complexo.
Por isso, estes testes não são mais utilizados no dia a dia pelos analistas da escola junguiana. Que, contudo, continuam de olhos bem abertos às evidências de possíveis complexos sinalizados por meio dos lapsos, gafes, perturbações da memória e sonhos, uma vez que estes podem revelar sintomas neuróticos. O que significa dizer que na base do método junguiano há, sim, até hoje, uma abordagem empírica e, portanto, científica.
Contudo, a ciência de Jung vai além da dimensão redutiva causal, pois inclui as potencialidades prospectivas sintéticas. Isso deixa a academia tradicional, baseada em evidências, mais refratária à obra junguiana. Afinal, quando vamos na direção da busca de sentido e significado para os fenômenos, inevitavelmente, iremos nos deparar com os mistérios. E estes são inexplicáveis, indefiníveis e plurais como os símbolos.
Referências
JUNG, C. G. Estudos experimentais. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
KAST, V. Jung e a Psicologia Profunda. São Paulo: Cultrix, 2019.
SILVEIRA, N. DA. Jung: vida e obra. 21. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
SILVEIRA, N. DA. Imagens do inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP - Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo, e na Granja Viana, em Cotia. E-mail: analisejunguianasp@gmail.com.
Como citar este artigo
MARTINEZ, Monica. A ciência e a psicologia junguiana. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Disponível em: <https://www.ijep.com.br/artigos/show/a-ciencia-e-a-psicologia-junguiana>. Acesso em: 12 mar 2020.
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Doutora em Ciências da Comunicação pela USP, especialista em Psicologia Junguiana pelo Ijep com aperfeiçoamento pelo Instituto C. G. Jung.
segunda-feira, 23 de março de 2020
A ciência e a psicologia junguiana
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